quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Série Grandes Mestres - III

Deusa Díkê, Símbolo da Justiça na Grécia antiga. De olhos destapados e... com uma espada na mão direita. (a Iustitia dos romanos, que até hoje vigora, tem os olhos tapados e não tem espada... é a espada do poder que está que a protege...)

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Série Grandes Mestres - II

Agostinho da Silva (1906-1994)

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Declaração de Amor à Língua Portuguesa, por Teolinda Gersão

Pensar, para quê, hoje, quando tudo já foi pensado e (em nosso nome) decidido? A língua-mãe é o "órgão" que nos permite pensar, organizar ideias, exprimir claramente aquilo que sentimos e pensamos, e julgar claramente aquilo que ouvimos e lemos dos outros. Embora possamos aprender e compreender outras línguas, nenhuma língua adoptiva substitui aquela que aprendemos da voz de quem nos quis com amor, e com amor nos recebeu no colo quando fomos lançados ao mundo. Alterar intencionalmente a língua-mãe, por qualquer razão ou decreto, é um acto fundamental de desamor; e embora se trate de um assunto de importância cultural - como tão bem e insistentemente sublinhou Vasco Graça Moura enquanto viveu - o seu maior interesse é político e é simples: incapacitar as pessoas. Torná-las incapazes de pensar e raciocinar com clareza; incapazes de exprimir e compreender a realidade e o significado das coisas que são como são e, como tal, existem na sua ecceidade (a ideia de "simplificar" a língua retirando-lhe do uso certas palavras tem esse objectivo político); incapazes de manter uma ligação à realidade do mundo, ligação necessária para que nele possam continuar a existir como pessoas e não como objectos virtuais facilmente manipuláveis. Orwell percebeu muito bem a natureza política do empreendimento da "alteração da língua", e escreveu em 1946 um ensaio sobre o tema cuja leitura vivamente recomendo (chama-se Politics and the English Language, e está disponível gratuitamente, entre outros quarenta e nove excelentes ensaios, em: http://gutenberg.net.au/ebooks03/0300011h.html). Para se perceber a intenção política com que a língua sempre foi e continua a ser usada e abusada, tem-se o exemplo recente das "Evocações" (e porque não comemorações?) do Centenário da I Grande Guerra. De facto, pouco haveria para "comemorar" no feito canalha da "elite" (republicana, liberal, burguesa;  a ordem dos qualificativos é arbitrária) que então "governava" o país (e cujos muitos filhos, netos e bisnetos continuam até hoje a "governá-lo", sempre "governando-se" a eles primeiro, pois quem parte e reparte... e hoje já não iluminada mas encandeada com as luzes dos faróis da "ciência juridica", esse "direito puro" universal que tando agradava a Hans Kelsen); no feito canalha - dizia eu - de enviar para a morte mais de cem mil infelizes, militarmente impreparados e que nem roupa tinham em condições para se precaverem do frio.  Tê-lo-ão feito para "credibilizar" a "república" junto das "potências europeias", a quem deviam a "factura" dos comboios e dos eléctricos da Carris, entre outras... algo equivalente hoje à "credibilização" do país junto dos "mercados"... "Evocar" é sem dúvida mais bonito e soa melhor aos ouvidos sensíveis - que são escassos e cada vez menos - que conhecem bem a "ética republicana" que acompanhou a "ética liberal", e sempre duvidaram do que diziam os "manuais de história" i.e., os manuais de revisionismo histórico - que continuam, agora em novilíngua e com "magalães" e quadro interactivo, a ser ditados aos infelizes de sempre nas escolas portuguesas. Mas para não alongar mais a conversa, que facilmente podia resvalar para altas figuras, figurantes e figurões que por aí se pastoreiam sob a capa de "humildes" pastores (pastores de homens e pastores da história e das ideias)... vamos lá então ao magnífico texto da Professora Teolinda Gersão, que ela escreve sob a forma de redacção de um aluno que oxalá ainda haja. Reza assim:


Redacção

Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete”: “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.

No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados; almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.


No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?


A professora também anda aflita. Pelo visto, no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer, dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)


Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.


E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação.O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.

E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.

Este texto é da autoria de Teolinda Gersão. Escritora, Professora Catedrática aposentada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Escreveu-o depois de ajudar os netos a estudar Português. Colocou-o no Facebook