terça-feira, 31 de maio de 2016

Do ser-aí do fascismo


Um comentário feito aqui, com louvor ao Jornalista Ferreira Fernandes

«A. Araújo parece-me estar certo; para mim, do que sei e aprendi, o fascismo é a doença mental do pensar colectivo, a neurose agravada que vê barcos salva-vidas com urgência em partir mas com a lotação já esgotada; que vê o mundo saturado de homens maus, inúteis e supérfluos; e que sente necessidade dos tais condomínios para manter o seu bem-estar e a sua segurança. O fascismo é assim a vontade colectiva de partir o mundo em dois, a vontade do puro preto e do puro branco com anulação de todos os tons de cinzento, o puritanismo, a jihad, a cruzada, o holocausto, a purga, etc. Muito bem, pois, FF, a sua exposição. Parece-me perfeitamente certa, além de indispensável aos tempos que correm.»

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Natália Correia (1923-1993)

Foto: aqui

Com a essência das flores mais coniventes
Na formosura, prepara o banho, Lídia.
Os anos murcham e só no corpo sentes
Quente e fagueira a passagem da vida.

Não digas, cética, que a carne é vã e passa
Desfeita em sombra, o negro rio. O Orco
Perséfone raptou rendido à graça.
Talvez no além precises do teu corpo.

Estima-o; e à beleza mais demora
Darão os fados na vida passageira.
Tépida a água, rescenda a musgo e a rosa.
De Paros seja o mármore da banheira.

Nua e rosada imerge na carícia
Emoliente da água perfumada,
E as folhas lassas dos membros espreguiça
Como uma humanizada flor aquática.

Não te esqueças porém de no amavio
Da água verter um brando óleo de malvas
Que te aveluda as coxas e mais brilho
Te dá ao polimento das espáduas.

E saindo do banho como a deusa
Sai, das macias ondas, nacarada,
Ergue-te para o amor, estátua de seda
Toda coberta com pérolas de água.

Por fim veste a camisa mais picante;
Com pó de ouro empoa o teu cabelo.
E vai para a alcova onde o teu amante
Te espera radioso e fiel como um espelho.

Natália Correia, O Armistício, 1985

quinta-feira, 19 de maio de 2016

A questão geracional e o Portugal democrático

Mais um apontamento breve para memória futura. Em comentário a um texto do prof. João César das Neves no DN com o título "Os filhos da adesão".

«Estimado Professor, não aceito a sua visão agregada do mundo e da sociedade. O "nós" inclusivo que insistentemente usa nas suas crónicas ofende-me, para além do facto de neste artigo em particular me ofender porque ignora completamente a "geração" a que pertenço, enfiando-a no mesmo saco da geração que beneficiou das chamadas "conquistas de Abril", que alguns dizem ter sido mais as "reconquistas de Novembro". Mas adiante. Gosto mais dos textos na primeira pessoa. Tinha 10 anos em 1975, e com a idade que tenho, e a vida que tenho tido, a que geração acha que pertenço: à sua, ou seja, à que nas suas palavras «endividou e bloqueou a economia, deixando um país doente»? Não me meta por favor nesse saco, pois o senhor nasceu em 1957 ou seja, é mais velho do que eu 8 anos, ou seja, tinha 18 anos em 1975, que já era idade para ter juízo e, também, para integrar listas partidárias. Por favor seja honesto e não me tente apagar, e comigo a minha tal "geração" como se ela nunca tivesse existido. Isso de apagar "gerações" é tentar rescrever a história; é uma atitude própria de estalinistas, que julgo não ser o seu caso.» 

Valdemar J. Rodrigues 
19 de Maio de 2016

Da economia informal

Da economia informal – Parte I de II

Quando se fala de economia informal há que notar o ilimitado desse informal, onde cabe qualquer actividade humana não controlada pelo Estado. Ora, o Estado pode achar, por exemplo, que cortar as unhas ou ficar com uma criança à guarda é algo que exige qualificações especializadas, dados os riscos que a actividade envolve para a segurança, o ambiente, etc. As pessoas, que informalmente cortavam as unhas umas às outras, ou os avós, que informalmente ficavam à guarda do neto enquanto os pais iam trabalhar, passam a estar em situação de ilegalidade, a menos que façam as devidas formações e obtenham as obrigatórias licenças. É o que está a acontecer com a agricultura informal: os pequenos agricultores já têm de fazer um curso de formação para poderem adquirir uma embalagem de pesticida. Muitos não o farão, por razões diversas, incluindo a de acharem que o Estado não tem de meter-se onde não é chamado, e que seguramente não é ele quem melhor conhece, ou quer mais bem. aos pés da mulher a quem o companheiro gratuitamente corta as unhas, à criança com quem os avós ficam gratuitamente enquanto a mãe vai com o namorado ao cinema, ou à nesga de terra há muito cultivada para sustento da família. O facto de haver gratuitidade e trocas de bens e serviços sem intermediação do dinheiro – quando a troca não é possível no momento, a memória sempre funcionou como reserva de valor – é um benefício a considerar. Se há bancos bons e maus, certamente também haverá economia informal boa e má. A má passa pelos negócios das sociedades offshore, pela lavagem de capitais que, por exemplo, os negócios do futebol propiciam; pela excessiva informalidade com que às vezes o Estado trata dos negócios públicos, pela corrupção, etc. Para não dar tiros nos pés, o povo deve pois precaver-se contra as cruzadas do Leviatã contra a economia informal, em que o “informal” aparece como o mal a combater. Porque não há só uma economia informal boa: há também uma economia informal absolutamente necessária para a sustentabilidade e o bom funcionamento de qualquer sociedade humana. É a ela que se deve o amortecimento do impacto social dos históricos empreendimentos do Leviatã.

É normal os economistas reconhecerem, baseando-se por exemplo na análise de Pareto, a necessidade de alguma informalidade na economia. Presos que estão aos números – e muitos à crença de que nada há melhor do que eles, os números, para analisar e representar a economia – asseveram, por exemplo, que se a economia “paralela” descer abaixo dos 15% do PIB a economia estagna, ou que se subir para lá dos 25% o sistema fiscal corre o risco de colapsar. São análises úteis, potencialmente moderadoras do devorismo estatal. Mas são-no apenas potencialmente, pois têm limitações que os governos e as agências inter-governamentais podem não querer reconhecer – e geralmente não reconhecem. O que significa a persistência do risco de que o pastor-Leviatã, ameaçado pela fome, coma as próprias ovelhas, o que neste caso significa tanto formalizar quanto consentir na informalidade da economia para lá do que deve, para tal manipulando a seu favor, se o deixarem, os números e as análises económicas. A primeira das limitações advém do conceito de economia paralela, que muitos economistas e políticos preferem ao de economia informal (na prática, tomam-nos por equivalentes). Tal conceito sugere que a actividade informal tem geralmente paralelo na economia formal, e é a partir desse paralelo – e aqui tem-se a segunda das limitações – que os economistas valorizam monetariamnte os bens e serviços produzidos na economia paralela.

Da economia informal – Parte II de II

A metodologia de avaliação do peso da economia informal tem pois, pelo menos, duas grandes limitações: por um lado parte do princípio de que a actividade informal tem paralelo na economia formal capaz de proporcionar a mesma utilidade, satisfação, etc. e, por outro, assume que os bens e serviços dessa actividade têm valor de mercado, valor com base no qual podem ser correctamente valorizados. Os números valem por isso o que valem, e só grosseiramente pode dizer-se que reflectem a realidade económica de um país. Pior ainda: pouco ou nada dizem relativamente à qualidade da informalidade em causa: agregam, tal como o faz o PIB em relação a toda a economia, a informalidade má, a boa e a indispensável a uma economia sã e sustentável. O que significa que quando se diz, por exemplo, que em Portugal há demasiada economia informal, um valor por hipótese acima dos 25% (os dados oficiais apontam para um valor próximo dos 27% do PIB ou seja, cerca de 46 mil milhões de euros que anualmente escapam à tributação), isso não é necessariamente nem mau nem verdadeiro; há que ter presente e salvaguardar a parte boa e indispensável dessa informalidade, a parte que, por infeliz coincidência (ou para alguns talvez não), é também a mais fraca ou seja, a que fiscalmente é mais fácil de atacar.

Por outro lado, a numerologia agregadora, estatal e economista, permite manter a eterna dúvida sobre o real significado do elevado peso da economia informal, e que pode até ser bom sinal; sinal por exemplo de que o inconsciente colectivo dos portugueses guarda consigo algo de valioso; algo que Agostinho da Silva decifrava: que o único objectivo moralmente aceitável da economia é o de suprimir a necessidade do trabalho humano, para tal fomentando a gratuitidade e a dignidade do viver colectivo. Ou seja, o contrário precisamente do que ela faz, com a providencial assistência do Estado. Há o risco, como disse anteriormente, de o pastor-Leviatã, ameaçado pela fome e habituado a uma vida faustosa, não hesitar em comer as próprias ovelhas. De uma forma ou de outra foi aquilo que, podendo, sempre fez quando se viu encurralado. O mal, ao que parece, é hoje geral, e é notório o esforço estatístico-económico para o tentar relativizar, nomeadamnte por via das análises comparadas. Mas talvez neste capítulo da informalidade económica, tal como reconhecidamente no da improvisação e da crónica falta de pontualidade, os portuguses estejam à frente de qualquer coisa sem o saberem, e sejam por isso alvo das invejas e inquietações de burocratas que falam em nome de “Bruxelas”, “Berlim”, “Lisboa”, etc. Era agora preciso perceber exactamente do quê estamos à frente, separar o trigo do joio e saber com quem podemos realmente contar nessa caminhada pelo futuro que a nós deve pertencer. Se não pudermos ou, pior ainda, se não quisermos saber e compreender, e ajudar também os outros a fazê-lo, é provável que uma vez mais o pior aconteça; que a culpa permaneça o pilar e motor da cultura que tem sido, aos olhos sempre de uma liberdade vencida. Agostinho sabia haver uma dívida histórica da cultura para com o escravo humano, e que essa dívida, que a cultura tardava em saldar – e que continua a aumentar, sob o olhar cúmplice de economistas e políticos – teria de ser paga mais cedo ou mais tarde, porque de outra maneira a cultura acabaria por não ter mais como justificar-se moralmente. O saldar da dívida – que era a libertação desse escravo – podia demorar mais ou menos tempo, ser um processo mais ou menos difícil, penoso ou violento, mas era para ele algo inevitável: era a conditio sine qua non da cultura.



Valdemar J. Rodrigues

Sintra, Lua Quase Cheia de Maio de 2016

terça-feira, 10 de maio de 2016

Da dívida da "cultura"


Fonte: aqui


O velho problema da subsidiariedade começa na concepção, pois é a "esfera superior" ou soberana que, com o intuito de que a lei - ou a mensagem - chegue a toda a parte, define a cada época e em cada circunstância o domínio de competências das "esferas inferiores" ou subsidiárias. A técnica, porém, não cessa de evoluir; a mesma técnica que criou as estradas e as pontes, as naus e os intrumentos de navegação, as armas e os satélites artificiais, que pemitiram a expansão e intensificação da "ideia" presente na "esfera superior". Ainda que esta vá mudando, a sua intenção parece-me ser sempre a mesma: a de imperar. Não vejo nenhum nenhum "freio" eficaz capaz de evitar que a "esfera superior" invada ou esvazie de competências as esferas inferiores, desde que tecnicamente se sinta preparada, ou equipada, para o fazer. Tal como não vejo nenhum Estado cuja ambição não passe por tornar-se omnisciente e omnipresente, além de omnipotente e eterno, isto claro está se não houver freios internos ou forças externas capazes de o refrear nessa ambição olímpica. Poderia hoje perguntar-se: para que precisa um Estado de uma "língua oficial", de um "sistema educativo" com educadores profissionais ou de um "sistema de justiça" senão para se auto-perpetuar na progressiva realização daquelas ambições? Concluindo: a subsidiariedade parece estar hoje, tal como no passado esteve muitas vezes, ameaçada pela evolução da técnica e, em particular, pela tremenda difusão do conhecimento. A dívida histórica da "cultura" para com o escravo humano continua porém a aumentar, com a cumplicidade das universidades e do "sistema educativo", e sem que se veja claramente o querer saldá-la das "esferas superiores". Mas penso que essa dívida, independentemente da vontade política - que é vontade dos "pastores espirituais" enquanto agentes da "cultura" - acabará mais tarde ou mais cedo por ter de ser paga, Desejavelmente sem purgas nem grande quantidade de sangue derramado, como desejaria certamente, para bem da "cultura" ou melhor, para salvação do seu lado bom, o visionário Agostinho da Silva.

Valdemar J. Rodrigues

Sintra, em Lua Crescente de Maio frio e chuvoso de 2016