No carrossel, as crianças alegres e pegajosas de algodão doce
entretêm-se rodando em volta do eixo. Entusiasmadas, experimentam o
potro malhado, a girafa africana, o avião e a furgoneta e, depois
das voltas que o dinheiro consente, vão-se embora azamboadas e algo
tristes pelo fim da festa. A democracia ‒ o modelo de governo que
mais responsabilidade exige aos cidadãos ‒ tende com o tempo a
transformar-se num grande carrossel popular onde os bonecos de
assento fazem as vezes dos políticos, os folgazões são as bases
populares, a música os media de massas, e o
maquinismo é controlado por alguma personagem mefistotélica que se
esconde atrás das cabines, não vá a ilusão desfazer-se! Apesar de
muitos cidadãos preferirem a roda gigante ou o canguru do amor, e de
alguns se esquivarem furtivos ao monótono entretenimento, o
carrossel gira e gira e gira e gira, provando que existe sempre uma
maioria popular que se diverte. Ao fim de mil rodopios, o pior
acontece quando falha a electricidade ou ‒ azar dos azares ‒
quando o preço dos bilhetes aumenta para além das posses populares,
algo que gera nas pobres gentes insofreáveis dores e desconsolos,
pois os malandros dos políticos viajam sempre sem pagar, agarrados
ao carrossel de traseiro tremido mesmo quando já só restam dois ou
três pagantes montados neles. Assim é nas crises em democracia, as
quais podem servir de bálsamo ao povo se, claro está, ele conseguir
chegar ao fundo do problema, que é o seguinte: para
quê andar estupidamente em círculos num cavalo de madeira quando se
pode ter um cavalo a sério capaz de nos levar aonde queremos?
A reflexão especulativa – essa fonte de claridade que ilumina e
esclarece o espírito – podia desta forma trazer grandes benefícios
ao povo, e fá-lo-ia talvez questionar-se: e afinal,
para onde é que realmente queremos ir?
Depois de algum tempo de meditação e justa ponderação, poderá
até o povo ser levado a indagar sobre delicadas questões práticas,
do tipo: porque razão tem ele, para poder exercer na sociedade uma
profissão, de sujeitar-se a rigorosas provas e contínuas
avaliações, e de possuir formações especializadas, aptidões
“culturais” mínimas onde se inclui o domínio da língua do
Estado em que estão, a fluência em língua inglesa – a língua
“universal” da ciência e da técnica modernas – e a
indispensável proficiência no uso das TIC, isto quando para o
exercício da profissão de político, métier de enorme responsabilidade pois envolve a tomada de decisões que
afectam o bem-estar presente e futuro de todos, nada disso é
exigido? Porque razão não se exigem a um presidente de junta, a um
membro da assembleia de freguesia, a um candidato à câmara
municipal ou a ao parlamento, no mínimo semelhantes avaliações e
qualificações? E a prestação de provas públicas para avaliar da
sua “cultura geral” e capacidade técnica para administrar a
fazenda pública? Alguns, ainda incrédulos e meio aturdidos pelo baque da
claridade, poderão alegar que a função
política não
corresponde a uma actividade profissional no seu sentido comum ou
habitual. Fraco argumento entenda-se, pois o amadorismo político
podia bem ser a causa da "crise",
mas jamais seu remédio. A questão é: o que teria afinal a
sociedade a perder com um escrutínio destes? Acaso serão as pessoas mais
inteligentes e cultas da sociedade também as mais propensas à
corrupção ou ao desmazelo? Mas eis que de novo as luzes acendem, a
economia volta a “crescer” e anunciam-se novas promoções (uma
corrida grátis a cada duas pagas!) e o carrossel volta a girar. Lá
para o Outono, pelo cair da folha, haverá “mudança” de
assentos. Ao potro malhado sucederá um esbelto potro de crinas
doiradas, e a furgoneta será substituída por um potente mini-avião.
Depois, seguir-se-ão os habituais enguiços no maquinismo. A culpa vai ser dos assentos, do Mefistóteles ou então daquelas aves agoirentas, tipo Cassandras, que não se juntam ao povo no alegre rodopiar. Necessário
e importante é que o carrossel continue a girar, a girar, a girar... mostrando como é forte
a democracia!
Valdemar J. Rodrigues