Fica a informação sobre o
6º CONGRESSO LUSO-MOÇAMBICANO DE ENGENHARIA que se irá realizar na cidade moçambicana de Maputo, entre 29 de Agosto e 2 de Setembro de 2011, e que é organizado pela
Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, pela
Faculdade de Engenharia da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique) e pelas Ordens de Engenheiros de
Portugal e
Moçambique. Para este congresso preparei, em conjunto com o Prof. Engº José A. Teixeira Trigo, uma comunicação intitulada "
MULTI, INTER E TRANSDISCIPLINARIDADE EM ENGENHARIA: O CASO PARADIGMÁTICO DA ENGENHARIA DO AMBIENTE EM PORTUGAL", cujo resumo alargado, aceite pela organização, se apresenta seguidamente.
MULTI, INTER E TRANSDISCIPLINARIDADE EM ENGENHARIA: O CASO PARADIGMÁTICO DA ENGENHARIA DO AMBIENTE EM PORTUGAL
Valdemar J. Rodrigues*1 e José A.Teixeira Trigo2
1Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Depart. de Engª do Ambiente - Lisboa, Portugal
2Faculdade de Engenharia e Ciências Naturais da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias - Lisboa, Portugal
*Email: sec.ambiente@ulusofona.pt
RESUMO
Para Karl Popper, os problemas ultrapassavam em muito as fronteiras das disciplinas. A ideia de que as disciplinas existiam autonomamente, sendo distinguíveis entre si pela matéria que investigavam, não passava para o filósofo de um resíduo do tempo em que se acreditava que qualquer teoria devia começar por definir o seu próprio conteúdo [Popper, 2003 (1963)]. As divisões e subdivisões do conhecimento científico seriam, fundamentalmente, o resultado de contingências históricas, e a consequente disciplinaridade o principal alvo dos esforços interdisciplinares visando combater o problema da fragmentação do conhecimento e da perda de visão de conjunto da realidade os quais, segundo Ortega y Gasset [1998(1930)], se vinham agravando desde finais do século XIX. Porém, os resultados de tais esforços parecem hoje estar muito aquém do esperado, tendo sido já em 1987 identificadas cerca de 8530 áreas do conhecimento resultantes quer da especialização, quer da sobreposição interdisciplinar de áreas pré-existentes [Klein, 1999]. Ou seja, cerca de um século de esforços de interdisciplinaridade, aos diversos níveis, terão contribuído mais para o surgimento de novas especializações do que para uma verdadeira compreensão geral dos problemas, em contraponto à especialização [Frodeman et al., 2001]. As engenharias, por definição áreas do conhecimento onde se observa a confluência disciplinar [Finch, 1961] e que estão por natureza ligadas à realidade e seus problemas [Borgmann, 1999], constituem um universo particularmente interessante para o estudo das relações disciplinares e das dinâmicas que se podem observar a esse nível, nomeadamente aquelas que levam ao aparecimento de novas disciplinas ou especializações. No mundo ocidental, a interação entre ciências e engenharias intensificou-se ao longo de todo o século XX, e em especial nas suas últimas décadas, procurando dar resposta a problemas tão reais como a pobreza, as enfermidades humanas, os desequílibrios demográficos e alimentares, o consumismo e a degradação ambiental. O reconhecimento de que nenhum desses problemas era passível de uma abordagem puramente disciplinar levou as ciências naturais a atravessarem as fronteiras com as ciências sociais, e vice-versa. Foi claramente esta “transgressão” que diferenciou, originalmente, a Engenharia do Ambiente das áreas “clássicas” de engenharia pois, como notaram Soulé e Press (1998), nenhuma outra pôs tanta ênfase em aspectos como a participação pública dos cidadãos e ONGs nos processos de tomada de decisão [e.g. Beck, 1992]; a necessidade de uma mudança de paradigma cultural e económico [e.g. Beck, 1992; Tisdell, 1991], ou o contributo da educação para uma cidadania sustentável [Orr, 2004], de modo a que as sociedades pudessem alcançar o objectivo da sustentabilidade. Nenhuma outra área da engenharia terá requerido para a sua acção técnica o estabelecimento de tantas pontes entre as ciências naturais e as ciências ditas sociais e humanas [Rodrigues, 2009]. No contexto já de si interessante das engenharias, a análise do caso da Engenharia do Ambiente – ela mesma um reflexo das tendências ocidentais obseravadas em matéria de prioridades para a acção em defesa do ambiente e de resposta institucional, por exemplo ao nível dos órgãos da administração pública, das universidades, dos centros de investigação, das empresas e das agremiações de carácter científico ou profissional – fornece elementos de grande valia para a compreensão dos desafios que actualmente impendem às engenharias. É a partir desse prisma que se procura responder nesta comunicação a algumas questões essenciais, como sejam: será que a Engenharia do Ambiente, desde que surgiu em Portugal nas universidades (novas) de Aveiro e Lisboa nos anos de 1977/78, acabou por adquirir o estatuto de disciplina especializada no seio das demais engenharias? Terá, nesse sentido, a sua natureza original, inter e transdisciplinar, mais focada no Todo do que nas partes (e, nessa acepção, mais holística e pós-moderna) sofrido entretanto alguma mudança fundamental? Ou terá, pelo contrário, de algum modo já cumprido o essencial da sua missão transdisciplinar? Como evoluiu ao longo deste período o relacionamento entre a Engenharia do Ambiente e as áreas tradicionais de engenharia? Ter-se-ão estas entretanto tornado mais interdisciplinares e holísticas, e doravante menos positivistas e cartesianas, não obstante o próprio Francis Bacon ter reconhecido que «A Natureza para ser comandada tem de ser obedecida.» [Sassower, 1995]? Poderão estar as áreas tradicionais de engenharia, a prazo, condenadas a algum processo transdisciplinar ou de fusão? E por último, mas não menos importante nesta comunicação: que campo de actuação específico se pode actualmente reservar à disciplina de Engenharia do Ambiente? Não obstante as respostas a cada uma destas questões, destaca-se a conclusão de que a Engenharia do Ambiente, quer como profissão quer enquanto disciplina técnica, deverá continuar a afirmar-se, tirando partido daquelas que são as suas principais referências identitárias: a visão holística dos problemas do desenvolvimento e uma ética singular que, mostrando-se hoje algo sinuosa, deve, julgamos, manter no essencial os princípios defendidos pelos seus fundadores, entre eles John Muir, Henry Thoreau e Aldo Leopold. Em particular, a renúncia irreflectida ao princípio do valor intrínseco dos bens (e serviços) da natureza é potencialmente perigosa. Por outro lado, a situação de ambivalência que marca o exercício profissional da Engenharia do Ambiente poderá perturbar o longo caminho que tem pela frente, pois ao mesmo tempo que procura autonomizar-se como disciplina técnica (o que teoricamente conseguiu com a criação, em 1999, do Colégio de Engenharia do Ambiente no seio da Ordem dos Engenheiros), o seu espectro de acção profissional, demasiado largo por natureza, poderá acabar por diluir-se irreversivelmente. A questão podia colocar-se hoje, prosaicamente, da seguinte forma: existirá actualmente algum domínio de actividade, ou acto formal de engenharia, que esteja legalmente ou do ponto de vista prático apenas reservado à Engenharia do Ambiente? O facto é que a excessiva hibridização disciplinar evidenciada em estudos recentes [e.g. Lameira et al., 2006], tal como a crescente redundância ao nível das áreas de investigação, a crescente mobilidade profissional, ou os problemas relacionados com a transição dos antigos cursos para o regime de Bolonha, prometem desafiar, não somente a Engenharia do Ambiente, mas a totalidade das disciplinas de engenharia. Do lado das oportunidade, merece ser realçado aquilo que é comum aos avanços mais recentes em matéria tecnologias da informação, ciência dos materiais, biotecnologia, engenharia da energia, toxicologia, entre outras: a sua convergência à escala dos átomos e das moléculas, que se designou genericamente de nanotecnologia. Esta nanoconvergência fornece não só uma comunidade de propósitos ao nível da Engenharia do Ambiente, com enorme potencial, como uma linguagem científica comum que, de baixo para cima, de certo modo reconstitui a unidade epistemológica essencial da Physis grega [Bettencourt, 2007]. E sugere subliminarmente uma solução para aquilo que parece ser a persistente dificuldade das sociedades aspirantes à sustentabilidade: o porem em prática, na sua verdadeira acepção, o chamado “princípio da integração”.
REFERÊNCIAS
Bettencourt, A. 2007. A questão do ambiente e ensino da sua ciência. Actas do Encontro Luso-Angolano em Ciências doAmbiente/II Congresso Nacional de Ciências do Ambiente, Èvora: Universidade de Évora.
Beck, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage, 1992
Finch, J. K. 1961. Engineering and science: a historical review and appraisal. Technology and Culture, 2, 318-32.
Frodeman, R. Mitcham, C. & Sacks, A.B. 2001. Science, Technology, and Society Newsletter, 126-127: 1-5.
Klein, J.T. Crossing boundaries: knowledge, disciplinarities, and interdisciplinarities. Charlottsville: University of Virginia Press, 1999
Lameira, S. (coord.) et al. – O sector do ambiente em Portugal. Lisboa: Instituto para a Inovação na Formação (INOFOR), 2006
Ortega y Gasset, J. A rebelião das massas. Lisboa: Relógio D'Água editores, 1998 (1930)
Borgmann, Albert. Holding on to reality: the nature of information at the turn of the millennium. Chicago: University of Chicago Press, 1999.
Orr, D.W. Earth in mind: on education, environment, and the human prospect. Washington: Island Press, 2004
Popper, K. Conjecturas e refutações. Coimbra: Almedina, 2003
Rodrigues, V.J. Desenvolvimento sustentável: uma introdução crítica. Parede: Principia, 2009
Sassower, R. Cultural collisions: postmodern technoscience. New York: Routledge, 1995
Soulé, Michael E. & Daniel Press. 1998. What is environmental studies?" Bioscience, 48 (5): 397-405.
Tisdell, C. Economics of environmental conservation. Amsterdam: Elsevier Science Publishers, 1991