sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Da cidade (naturalmente) dividida

 Em comentário ao texto de Vitor Bento Sobre a Web Summit, aqui, escrevi assim:

«Advogados, médicos, financeiros (é engraçado não ter posto economistas, será por ser economista que o fez?), professores, arquitectos, etc. E porque não juízes. padres, políticos, legisladores, militares, polícias, bombeiros, etc? O "super-homem biónico" não é coisa nova; quem pode há muito que se "entrelaçou" com a técnica; que usa, por exemplo, próteses dentárias, pacemakers, membros artificiais, insulina biotecnologicamente produzida, etc. E há até aqueles que se multiplicam, vivem várias vidas, mudam de rosto, identidade, etc. Ver a grandes distânias, ou na escuridão, ou ter uma memória googleana pode ser, para o indivíduo, uma inovação, mas não para o grande colectivo de indivíduos, para a grande empresa ou para o estado que são, ou pelo menos ambicionam ser, à maneira de Deus e, como os deuses, imortais (veja-se a letra do hino: «...nação valente e imortal»). Agora essa de o Facebook conhecer melhor o sr. Vitor Bento do que os seus amigos e família é, no mínimo, constatação de um problema ou ideia fantástica! Problema da sociedade - a anomia e o crescente isolamento dos indivíduos na multidão e no meio de tanta possibilidade de comunicação, talvez - ou ideia à qual subjaz a velhíssima convicção de uma cultura a que o esquecido Spengler chamava de fáustica: a de que o ser humano chegaria ao ponto de se auto-produzir. Ideia velha portanto, cujo grande crítico foi e continua ainda a ser o mestre Agostinho de Hipona, crítico do modo de ser maniqueu. Os maniqueus, tal como os inquisidores (medievais e modernos) e os nazis, continuam por aí, vivos e de boa saúde. O que esqueceram da humanidade foi algo que os antigos gregos bem conheciam e que tomavam por máximas da sua vida: o "nada em excesso" - este nada é mesmo nada, nem sequer o amor ou a verdade em excesso são oisas boas! - e o socrático "conhece-te a ti mesmo", melhor do que qualquer Google, ou do que qualquer estado. A técnica, essa, é certo que não tem culpa nenhuma. Parece-me profundamente errado o sr. Vitor Bento falar de um "super-homem biónico" como se ele fosse de outra espécie humana; como se a sua causa, técnica, não fosse afinal tão-só e profundamente humana, fruto dessa velha cultura fáustica do Ocidente. Falar assim, com esse à-vontade e com esse sentido (a)crítico, faz até pensar no renascimento do sonho nazi de naturalzação da política e do fenómeno político, hoje resplandecente na chamada biopolítica. Será que é de biopolítica que se trata quando sugere o domínio de uma espécie de humanos por outra espécie de humanos, biónica ou cyborg, à qual a primeira, a "actual espécie humana" haveria "naturalmente" de submeter-se? Estou em crer e espero, sinceramente, que não. Até porque acredito no lema da minha "alma mater": omnis civitas contra se divisa non stabit. A "cidade" dividida, composta já não de uma mas de duas "humanidades", acabaria por desaparecer da face da Terra.»

Valdemar J. Rodrigues,  10-11-2017