Em comentário ao texto de Vitor Bento Sobre a Web Summit, aqui, escrevi assim:
«Advogados, médicos,
financeiros (é engraçado não ter posto economistas, será por ser economista que o fez?), professores, arquitectos, etc. E porque não
juízes. padres, políticos, legisladores, militares, polícias, bombeiros, etc? O
"super-homem biónico" não é coisa nova; quem pode há muito que se "entrelaçou" com a técnica; que usa, por
exemplo, próteses dentárias, pacemakers, membros artificiais, insulina biotecnologicamente produzida, etc. E há até aqueles que se
multiplicam, vivem várias vidas, mudam de rosto, identidade, etc. Ver a
grandes distânias, ou na escuridão, ou ter uma memória googleana pode ser, para
o indivíduo, uma inovação, mas não para o grande colectivo de indivíduos,
para a grande empresa ou para o estado que são, ou pelo menos ambicionam ser, à maneira de Deus e, como os deuses, imortais
(veja-se a letra do hino: «...nação valente e imortal»). Agora essa de o
Facebook conhecer melhor o sr. Vitor Bento do que os seus amigos e
família é, no mínimo, constatação de um problema ou ideia
fantástica! Problema da sociedade - a anomia e o crescente isolamento dos indivíduos na multidão e no meio de tanta possibilidade de comunicação, talvez - ou ideia à qual subjaz a velhíssima convicção de uma cultura a que o esquecido Spengler chamava
de fáustica: a de que o ser humano chegaria ao ponto de se
auto-produzir. Ideia velha portanto, cujo grande crítico foi e continua
ainda a ser o mestre Agostinho de Hipona, crítico do modo de ser maniqueu. Os maniqueus, tal como os inquisidores (medievais e modernos) e os
nazis, continuam por aí, vivos e de boa saúde. O que esqueceram da
humanidade foi algo que os antigos gregos bem conheciam e que tomavam
por máximas da sua vida: o "nada em excesso" - este nada é mesmo nada,
nem sequer o amor ou a verdade em excesso são oisas boas! - e o
socrático "conhece-te a ti mesmo", melhor do que qualquer Google, ou do
que qualquer estado. A técnica, essa, é certo que não tem culpa nenhuma.
Parece-me profundamente errado o sr. Vitor Bento falar de um
"super-homem biónico" como se ele fosse de outra espécie humana; como se
a sua causa, técnica, não fosse afinal tão-só e profundamente humana,
fruto dessa velha cultura fáustica do Ocidente. Falar assim, com esse
à-vontade e com esse sentido (a)crítico, faz até pensar no renascimento
do sonho nazi de naturalzação da política e do fenómeno político, hoje
resplandecente na chamada biopolítica. Será que é de biopolítica que se
trata quando sugere o domínio de uma espécie de humanos por outra
espécie de humanos, biónica ou cyborg, à qual a primeira, a "actual
espécie humana" haveria "naturalmente" de submeter-se? Estou em crer e
espero, sinceramente, que não. Até porque acredito no lema da minha "alma
mater": omnis civitas contra se divisa non stabit. A "cidade" dividida,
composta já não de uma mas de duas "humanidades", acabaria por
desaparecer da face da Terra.»
Valdemar J. Rodrigues, 10-11-2017