Escreveu o velho homem:
«Nada pior que as paixões lentas. As que ardem lentamente queimando o coração sem lhe dar tréguas. Excitando a carne para lá dos limites do razoável. Do que ela ainda consegue aguentar. Escrever é esquecer (dizia o Ricardo Reis) e por isso escrevo agora ainda com a lembrança fresca. Da paixão tardia que tendo sido não tinha de ser nem certamente como ser. Talvez a última paixão de uma vida. A primeira talvez que chegou a acender o seu pavio. A que sacudiu o corpo e o adormeceu sem lhe dar a mínima chance. Naquele dia de Agosto foi assim e não mais deixou de ser assim – o assim aumentou e incendiou o corpo até ao centro. Até ao lugar de onde ele já não podia fugir. Tarde demais. O possível não tem como voltar a ser o mesmo possível. O entardecer encurta-o e corta-lhe as pernas. Demasiado cruel talvez. O impossível derradeiro guardião de um destino. Olhei-te naquele dia e fiquei completamente preso a ti. A cada fraterno e apertado abraço que desde então nos fomos dando mais preso a ti fui ficando. Às tantas sentia o teu cheiro e quase enlouquecia. Mas nada aconteceu. Escrevi o teu nome em letras garrafais na areia da praia. Gritei-o bem alto às aves e aos ventos para que talvez me ouvisses. Mas nada aconteceu. Saber de ti só mesmo pelo teu horóscopo. E por isso li-o todos os dias durante dois lentos anos esperando que ele me falasse de ti e de um possível encontro de nós dois. Mas nada aconteceu. Comecei então a duvidar que fosse visível e ainda existisse realmente para ti. E entardecia. Mesmo assim ainda me julgava forte o suficiente para mudar tudo e viver finalmente o amor liberto da minha vida. Um que se bastasse a si mesmo sem precisar de mais razões para provocá-lo. Preparei o meu corpo para ti. Esvaziei a minha alma de muito lixo que tinha lá dentro. Não imaginas o bem que me fizeste sem saberes que o fazias, e pelo qual te estou eternamente grato. Literalmente rejuvenesci a pensar em ti. A imaginar que um dia faríamos amor como dois jovens loucamente apaixonados. Mas nada aconteceu. A dada altura achei-me lançando moedas ao ar para saber como estavas e o que pensavas de mim. Primeiro uma vez depois à melhor de duas e de três. Perguntava à sorte se sentias por mim algo semelhante ao que eu sentia por ti e, por fim, já só se sentias alguma coisa, se ainda sequer te lembravas de mim. As moedas obviamente nada resolviam, a não ser a temporária amargura de ter de aceitar uma verdade indesejada. Nada aconteceu. Nunca nada aconteceu nem eu fiz para que acontecesse e, no entanto, aos poucos fui ficando diferente e julgo que muito melhor. Entretanto houve aquela tarde de Dezembro e como tinha de ser a ilusão desfez-se. Caí em mim e quase senti que estava caindo no vazio, como quando de repente o chão se fende debaixo dos nossos pés durante os terramotos e nós caímos lá dentro sem sabermos se tem fundo. Nunca tinha sentido tal vertigem - confesso. Pelo menos da maneira que senti. Pois não havia absolutamente nada e absolutamente nada acontecera. E no entanto acontecera o abalo e o chão por baixo fendera-se. Como não tinha asas tentei escrever. Só que a escrita já não me segurava - o mundo dela era também etéreo, do mesmo tipo daquele que eu criara para o possível "nosso". Então resolvi rezar e pedir a Deus, ao Sol e ao Irmão Oceano que me ajudassem. O que fazer para sair dali? O que dizer-te se nada sabias? E a verdade é que todos me ajudaram. Talvez também porque a tarde já ia tão adiantada. Se nada acontecera, mesmo nada, o mínimo sinal sequer de alguma coisa, porque me apaixonara eu tão completamente por ti? Porque razão alimentara essa paixão durante tanto tempo sem que nada acontecesse ? Foi então que o Sol sorriu para mim e o Irmão Oceano agarrou os meus braços para que o ouvisse: "Será que sabes a razão porque ainda estás vivo?" - perguntou. Finalmente fez-se luz no meu confuso espírito. Não fora só o bem que sem saberes me tinhas feito. Esse rejuvenescimento e tal. Tu salvaras-me a vida, talvez de qualquer coisa má que sem ti podia ter acontecido e não aconteceu - o quê nem o Sol nem Deus mo disseram; eles sempre gostam de guardar segredo sobre o que podia ter sido mas não foi. Mas se me salvaste a vida sem saberes podia eu manter-te isso em segredo? Não te mostrar a mais profunda gratidão pelo que mesmo sem saberes e sem quereres fizeste? Por momentos duvidei do Sol. Teria ele já contado os meus dias até eu te conhecer e me apaixonar por ti? E se assim foi, porque razão mudou ele os seus planos para o meu destino? Perguntas também a que os deuses nunca respondem. Foi por isso que resolvi escrever-te esta carta. Mostrar-me grato, muito gentil ou dizer-te simplesmente obrigado só podia lançar sobre ti dúvidas. Obrigado de quê ou porquê - logo perguntarias. E agora já podes ficar a saber de quê e porquê. Não digo que a dor da tua "impresença" tivesse desaparecido. Não. Não desapareceu. Vai certamente demorar algum tempo até que desapareça essa espécie de mundo paralelo que criei, no qual me enredei e a ti nele sem saberes. Só que agora, com a ajuda de Deus e do Sol, já consigo ver o fundo do abismo. Mirá-lo de cima sem medo e dizer-lhe: "Não. Ainda não vai ser desta!"; "Entardeceu, é verdade, só que B. tornou-me mais novo!". A minha vida graças a ela ganhou novos pés para andar e coisas em que acreditar, pelo que nela hão-de haver ainda marés boas, e nem faltarão aqueles fogosos dias de Agosto. (Confesso até que me sinto já um nadinha apaixonado por alguém, só que desta vez se acontecer quero dizer-lhe ao início, para que o coração logo saiba e a queimar-se não arda durante tanto tempo). Quanto a ti B., minha querida, só tenho de agradecer-te por me teres salvo a vida; por eu tê-la por ti mudado (para melhor) sem tu saberes que o fazias. Agora já sabes. Para a tua desejo também toda a sorte do mundo e mais alguma. Quem sabe se um dia não nos encontraremos para dançar? Ou até para nos abraçarmos e beijarmos finalmente como fazem os amantes? E sabes. Nunca peças desculpa pelo que não aconteceu ter acontecido. Seria absurdo. Goza a vida enquanto é tempo. E há a tua beleza. Essa que a ninguém deve desculpas, muito menos a velhos homens como eu era quando me apaixonei por ti. Até sempre minha querida!»
Ao que as esferas depois de ler se calaram, para poderem meditar.
E após a meditação concluíram: quem sabe se um pouquinho de Erotomania no macho já um pouco velhote, bem doseada como aqui parece, não pode aumentar-lhe a longevidade?
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