Elogio do Desemprego
«Mantenhamo-nos pois, laboriosamente, desempregados!» – concluiu o velho sábio. Absurdo?
Talvez não. Existe na sociedade “moderna” um mal muito maior do que o desemprego. Esse mal é o emprego e aquilo que muitos “empregados” diligentes têm andado, e andam, a fazer. Nas últimas décadas as economias modernas especializaram-se na acção antiética ou seja, no culto da imoralidade: hoje há emprego sobretudo para quem estiver disposto a fazer mal a si próprio e aos outros. Não eram pois inocentes muitas daquelas “ofertas de emprego” para “jovens dinâmicos, ambiciosos e agressivos”. Hoje o pudor talvez exija que não se publicite muito do emprego que por aí vai subsistindo: «Se és jovem, dinâmico e ambicioso, vem ajudar-nos a destruir o que resta da civilização europeia, a degradar a sociedade, começando por nos oferecer a cabeça dos teus familiares e amigos!» – seria talvez uma oferta de emprego consentânea com os tempos que correm. É a esse tipo de “empregos” que se candidatam avidamente, legislatura após legislatura, políticos de fraco calibre e gente nada escrupulosa. As corporações globais ditam as leis e governam na sombra, e os políticos indígenas, ananicados e disformes como aquelas personagens de Fellini, fingem ser eles que mandam, não vá o povo perceber e o poder cair na rua, o que para eles significaria desemprego. Julgam-se indispensáveis, mas aos poucos vão aprendendo como as corporações globais os descartam sem clemência, após o “trabalho” feito. Descurando que outrora cada cão podia escolher entre vários donos, o que lhe permitia alcandorarse sobre o próximo alimentando a sua canina vaidade, os anões políticos não repararam que cada vez mais os donos vão sendo os mesmos, e ignotos proliferam sob os sorrisos falsos e espectrais de CEO diligentes. Sorrisos que cada vez mais dispensam, sem oportunidade de represália, a necessidade de sujar a seda das camisas em obscenos jantares partidários, distritais, municipais e paroquiais, onde até há bem pouco tempo se cozinhavam votos e favores, muitas vezes sob a forma de “empregos”. Um terror pois haver cada vez mais povo “desempregado” sem dever ou senhorio, ainda por cima quando a Preguiça já não é o pecado que era, fruto da inevitável lei da eira e do nabal, da tecnologia, e sobretudo das armadilhas legais imobilizadoras do Estado, cuidadosamente montadas pelo neofeudalismo corporativo governante.
Alguns anões queixam-se dos banqueiros, evitando a todo o custo lembrar-se de quem esteve ao balcão, que foram eles, os zelosos bancários. Num mundo que se vira assim do avesso, quando o chão se revolve em tectónicos sobressaltos, nem o melhor garçon se equilibra – concluem. Pois afinal tão ladrão é o que fica à espreita como aquele que vai à vinha, ou será ao “contrário”? O ridículo das personagens torna-se amiúde soez, o que prova que até para a indignidade humana existe uma Estética. Insistem que são os sapatos que fazem o bailarino. Que a economia não avança por falta de produtividade. Mas avança para onde? – pergunta o velho teólogo enquanto a câmara roda noutro plano mostrando as pernas das bailarinas. «O que andam a fazer, senão mal uns aos outros e à sociedade, tantos “empregados” diligentes da nossa sociedade?» – ouve-se longitudinalmente sob o furor ascendente da claque. Noutro canal, um pensador debita: «O segredo da boa economia passou sempre ao longo da história por duas coisas elementares: produzir, individualmente ou no seio familiar, qualquer coisa de útil para a comunidade, e poder aceder livremente a um espaço público de trocas de bens e serviços diferenciados: o “mercado”, no seu verdadeiro e original sentido.». Ninguém presta atenção. O falo da turba atinge o pico do golo, e o sémen da paz tomba sobre ela efémero mas eficaz. Acolá, uma jovem obesa rejubila por cima de uma balança. «Que horror não serem obrigados a ver-nos! Não saberem quem somos quando inquiridos na sondagem... isso não devia acontecer!» – diz um anão professor de Leis. Mas acontece. «Acontece que as sociedades modernas mutilaram essa complexa simplicidade, transferindo para a corporação o locus da produção e para o Estado a regulação de toda a actividade económica. Entre a base produtiva e o consumidor final de bens e serviços montou-se uma vastíssima rede de interesses e relações intermediárias que hoje proíbem a livre troca de bens e serviços. Ou restringem-na a tal ponto que tornam absolutamente vulnerável e insegura a existência humana. Eis o nó górdio da questão!» – diz o ancião diante da folha do mar que descai. «À actividade dessa rede que essencialmente nada produz, e onde proliferam agiotas e especuladores, deu-se o nome de “gestão”, algo digno de gentios, não de aristocratas de pensamento ou de gente culta e civilizada. A “gestão moderna” criou e mantém entre aqueles que produzem e aqueles que consomem um sentimento de ansiedade permanente, uma ansiedade que coloca o homem permanentemente ao nível da besta, quando não da ratazana de esgoto esfaimada e insaciável. Ela transformou em selva o jardim do homem civilizado. Fê-lo em nome da “civilização”, herdando do colonialismo a ideia perversa de que o ser diferente, ou desconhecido, é por defeito o incivilizado ou selvagem. Civilizado porém é o homem que é senhor de si mesmo e do seu tempo; é aquele que produz criativamente. O homo laborans ou seja, o empregado, representa o homem na sua condiçãomais degradante e indigna, no seu estado puramente contingente e instrumental: representa o homem que não é reconhecido pelos outros homens como um fim em si mesmo. Há por vezes mais humanidade num sem-abrigo do que num empregado diligente que, tal como os ratos, sempre proliferam na insalubridade. Se nas crises se procura atenuar a responsabilidade social pelo desemprego, também se devia nas crises e fora delas acabar com esse reconhecimento absurdo pelo “mérito social” de “dar emprego” e “ter muitos empregados”. O trabalho humano civilizado não devia ser tripalium, sede de medos e sevícias. Devia ser antes “desemprego criativo”, para mais em sociedades avançadas tecnologicamente onde é cada vez mais evidente a dispensabilidade do trabalho humano. E de que viverá o “desempregado criativo”, poderão perguntar os anões políticos e os seus eficientes “empregadores”? Ora bem: viverá daquilo que sempre viveu o homem civilizado ou seja, da sua arte e do seu génio, da sua livre participação na economia ou seja, no antigo e original mercado de trocas de bens e serviços; viverá dos dividendos da livre expressão e da plena participação na vida política enquanto cidadão e igual, usufruindo para tal dos espaços de liberdade e justiça criados e mantidos pelas sociedades avançadas para o efeito.
Valdemar J. Rodrigues
In: Textos Vadios, pp. 24-26. Sintra: Ed. Autor,, 2012
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