terça-feira, 14 de junho de 2016

Sigmund Freud (1856-1939)

Foto: aqui

Que tal uma leitura? Isto aqui, por exemplo. Enquanto o ar não aquece e a Lua enche?

terça-feira, 31 de maio de 2016

Do ser-aí do fascismo


Um comentário feito aqui, com louvor ao Jornalista Ferreira Fernandes

«A. Araújo parece-me estar certo; para mim, do que sei e aprendi, o fascismo é a doença mental do pensar colectivo, a neurose agravada que vê barcos salva-vidas com urgência em partir mas com a lotação já esgotada; que vê o mundo saturado de homens maus, inúteis e supérfluos; e que sente necessidade dos tais condomínios para manter o seu bem-estar e a sua segurança. O fascismo é assim a vontade colectiva de partir o mundo em dois, a vontade do puro preto e do puro branco com anulação de todos os tons de cinzento, o puritanismo, a jihad, a cruzada, o holocausto, a purga, etc. Muito bem, pois, FF, a sua exposição. Parece-me perfeitamente certa, além de indispensável aos tempos que correm.»

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Natália Correia (1923-1993)

Foto: aqui

Com a essência das flores mais coniventes
Na formosura, prepara o banho, Lídia.
Os anos murcham e só no corpo sentes
Quente e fagueira a passagem da vida.

Não digas, cética, que a carne é vã e passa
Desfeita em sombra, o negro rio. O Orco
Perséfone raptou rendido à graça.
Talvez no além precises do teu corpo.

Estima-o; e à beleza mais demora
Darão os fados na vida passageira.
Tépida a água, rescenda a musgo e a rosa.
De Paros seja o mármore da banheira.

Nua e rosada imerge na carícia
Emoliente da água perfumada,
E as folhas lassas dos membros espreguiça
Como uma humanizada flor aquática.

Não te esqueças porém de no amavio
Da água verter um brando óleo de malvas
Que te aveluda as coxas e mais brilho
Te dá ao polimento das espáduas.

E saindo do banho como a deusa
Sai, das macias ondas, nacarada,
Ergue-te para o amor, estátua de seda
Toda coberta com pérolas de água.

Por fim veste a camisa mais picante;
Com pó de ouro empoa o teu cabelo.
E vai para a alcova onde o teu amante
Te espera radioso e fiel como um espelho.

Natália Correia, O Armistício, 1985

quinta-feira, 19 de maio de 2016

A questão geracional e o Portugal democrático

Mais um apontamento breve para memória futura. Em comentário a um texto do prof. João César das Neves no DN com o título "Os filhos da adesão".

«Estimado Professor, não aceito a sua visão agregada do mundo e da sociedade. O "nós" inclusivo que insistentemente usa nas suas crónicas ofende-me, para além do facto de neste artigo em particular me ofender porque ignora completamente a "geração" a que pertenço, enfiando-a no mesmo saco da geração que beneficiou das chamadas "conquistas de Abril", que alguns dizem ter sido mais as "reconquistas de Novembro". Mas adiante. Gosto mais dos textos na primeira pessoa. Tinha 10 anos em 1975, e com a idade que tenho, e a vida que tenho tido, a que geração acha que pertenço: à sua, ou seja, à que nas suas palavras «endividou e bloqueou a economia, deixando um país doente»? Não me meta por favor nesse saco, pois o senhor nasceu em 1957 ou seja, é mais velho do que eu 8 anos, ou seja, tinha 18 anos em 1975, que já era idade para ter juízo e, também, para integrar listas partidárias. Por favor seja honesto e não me tente apagar, e comigo a minha tal "geração" como se ela nunca tivesse existido. Isso de apagar "gerações" é tentar rescrever a história; é uma atitude própria de estalinistas, que julgo não ser o seu caso.» 

Valdemar J. Rodrigues 
19 de Maio de 2016

Da economia informal

Da economia informal – Parte I de II

Quando se fala de economia informal há que notar o ilimitado desse informal, onde cabe qualquer actividade humana não controlada pelo Estado. Ora, o Estado pode achar, por exemplo, que cortar as unhas ou ficar com uma criança à guarda é algo que exige qualificações especializadas, dados os riscos que a actividade envolve para a segurança, o ambiente, etc. As pessoas, que informalmente cortavam as unhas umas às outras, ou os avós, que informalmente ficavam à guarda do neto enquanto os pais iam trabalhar, passam a estar em situação de ilegalidade, a menos que façam as devidas formações e obtenham as obrigatórias licenças. É o que está a acontecer com a agricultura informal: os pequenos agricultores já têm de fazer um curso de formação para poderem adquirir uma embalagem de pesticida. Muitos não o farão, por razões diversas, incluindo a de acharem que o Estado não tem de meter-se onde não é chamado, e que seguramente não é ele quem melhor conhece, ou quer mais bem. aos pés da mulher a quem o companheiro gratuitamente corta as unhas, à criança com quem os avós ficam gratuitamente enquanto a mãe vai com o namorado ao cinema, ou à nesga de terra há muito cultivada para sustento da família. O facto de haver gratuitidade e trocas de bens e serviços sem intermediação do dinheiro – quando a troca não é possível no momento, a memória sempre funcionou como reserva de valor – é um benefício a considerar. Se há bancos bons e maus, certamente também haverá economia informal boa e má. A má passa pelos negócios das sociedades offshore, pela lavagem de capitais que, por exemplo, os negócios do futebol propiciam; pela excessiva informalidade com que às vezes o Estado trata dos negócios públicos, pela corrupção, etc. Para não dar tiros nos pés, o povo deve pois precaver-se contra as cruzadas do Leviatã contra a economia informal, em que o “informal” aparece como o mal a combater. Porque não há só uma economia informal boa: há também uma economia informal absolutamente necessária para a sustentabilidade e o bom funcionamento de qualquer sociedade humana. É a ela que se deve o amortecimento do impacto social dos históricos empreendimentos do Leviatã.

É normal os economistas reconhecerem, baseando-se por exemplo na análise de Pareto, a necessidade de alguma informalidade na economia. Presos que estão aos números – e muitos à crença de que nada há melhor do que eles, os números, para analisar e representar a economia – asseveram, por exemplo, que se a economia “paralela” descer abaixo dos 15% do PIB a economia estagna, ou que se subir para lá dos 25% o sistema fiscal corre o risco de colapsar. São análises úteis, potencialmente moderadoras do devorismo estatal. Mas são-no apenas potencialmente, pois têm limitações que os governos e as agências inter-governamentais podem não querer reconhecer – e geralmente não reconhecem. O que significa a persistência do risco de que o pastor-Leviatã, ameaçado pela fome, coma as próprias ovelhas, o que neste caso significa tanto formalizar quanto consentir na informalidade da economia para lá do que deve, para tal manipulando a seu favor, se o deixarem, os números e as análises económicas. A primeira das limitações advém do conceito de economia paralela, que muitos economistas e políticos preferem ao de economia informal (na prática, tomam-nos por equivalentes). Tal conceito sugere que a actividade informal tem geralmente paralelo na economia formal, e é a partir desse paralelo – e aqui tem-se a segunda das limitações – que os economistas valorizam monetariamnte os bens e serviços produzidos na economia paralela.

Da economia informal – Parte II de II

A metodologia de avaliação do peso da economia informal tem pois, pelo menos, duas grandes limitações: por um lado parte do princípio de que a actividade informal tem paralelo na economia formal capaz de proporcionar a mesma utilidade, satisfação, etc. e, por outro, assume que os bens e serviços dessa actividade têm valor de mercado, valor com base no qual podem ser correctamente valorizados. Os números valem por isso o que valem, e só grosseiramente pode dizer-se que reflectem a realidade económica de um país. Pior ainda: pouco ou nada dizem relativamente à qualidade da informalidade em causa: agregam, tal como o faz o PIB em relação a toda a economia, a informalidade má, a boa e a indispensável a uma economia sã e sustentável. O que significa que quando se diz, por exemplo, que em Portugal há demasiada economia informal, um valor por hipótese acima dos 25% (os dados oficiais apontam para um valor próximo dos 27% do PIB ou seja, cerca de 46 mil milhões de euros que anualmente escapam à tributação), isso não é necessariamente nem mau nem verdadeiro; há que ter presente e salvaguardar a parte boa e indispensável dessa informalidade, a parte que, por infeliz coincidência (ou para alguns talvez não), é também a mais fraca ou seja, a que fiscalmente é mais fácil de atacar.

Por outro lado, a numerologia agregadora, estatal e economista, permite manter a eterna dúvida sobre o real significado do elevado peso da economia informal, e que pode até ser bom sinal; sinal por exemplo de que o inconsciente colectivo dos portugueses guarda consigo algo de valioso; algo que Agostinho da Silva decifrava: que o único objectivo moralmente aceitável da economia é o de suprimir a necessidade do trabalho humano, para tal fomentando a gratuitidade e a dignidade do viver colectivo. Ou seja, o contrário precisamente do que ela faz, com a providencial assistência do Estado. Há o risco, como disse anteriormente, de o pastor-Leviatã, ameaçado pela fome e habituado a uma vida faustosa, não hesitar em comer as próprias ovelhas. De uma forma ou de outra foi aquilo que, podendo, sempre fez quando se viu encurralado. O mal, ao que parece, é hoje geral, e é notório o esforço estatístico-económico para o tentar relativizar, nomeadamnte por via das análises comparadas. Mas talvez neste capítulo da informalidade económica, tal como reconhecidamente no da improvisação e da crónica falta de pontualidade, os portuguses estejam à frente de qualquer coisa sem o saberem, e sejam por isso alvo das invejas e inquietações de burocratas que falam em nome de “Bruxelas”, “Berlim”, “Lisboa”, etc. Era agora preciso perceber exactamente do quê estamos à frente, separar o trigo do joio e saber com quem podemos realmente contar nessa caminhada pelo futuro que a nós deve pertencer. Se não pudermos ou, pior ainda, se não quisermos saber e compreender, e ajudar também os outros a fazê-lo, é provável que uma vez mais o pior aconteça; que a culpa permaneça o pilar e motor da cultura que tem sido, aos olhos sempre de uma liberdade vencida. Agostinho sabia haver uma dívida histórica da cultura para com o escravo humano, e que essa dívida, que a cultura tardava em saldar – e que continua a aumentar, sob o olhar cúmplice de economistas e políticos – teria de ser paga mais cedo ou mais tarde, porque de outra maneira a cultura acabaria por não ter mais como justificar-se moralmente. O saldar da dívida – que era a libertação desse escravo – podia demorar mais ou menos tempo, ser um processo mais ou menos difícil, penoso ou violento, mas era para ele algo inevitável: era a conditio sine qua non da cultura.



Valdemar J. Rodrigues

Sintra, Lua Quase Cheia de Maio de 2016

terça-feira, 10 de maio de 2016

Da dívida da "cultura"


Fonte: aqui


O velho problema da subsidiariedade começa na concepção, pois é a "esfera superior" ou soberana que, com o intuito de que a lei - ou a mensagem - chegue a toda a parte, define a cada época e em cada circunstância o domínio de competências das "esferas inferiores" ou subsidiárias. A técnica, porém, não cessa de evoluir; a mesma técnica que criou as estradas e as pontes, as naus e os intrumentos de navegação, as armas e os satélites artificiais, que pemitiram a expansão e intensificação da "ideia" presente na "esfera superior". Ainda que esta vá mudando, a sua intenção parece-me ser sempre a mesma: a de imperar. Não vejo nenhum nenhum "freio" eficaz capaz de evitar que a "esfera superior" invada ou esvazie de competências as esferas inferiores, desde que tecnicamente se sinta preparada, ou equipada, para o fazer. Tal como não vejo nenhum Estado cuja ambição não passe por tornar-se omnisciente e omnipresente, além de omnipotente e eterno, isto claro está se não houver freios internos ou forças externas capazes de o refrear nessa ambição olímpica. Poderia hoje perguntar-se: para que precisa um Estado de uma "língua oficial", de um "sistema educativo" com educadores profissionais ou de um "sistema de justiça" senão para se auto-perpetuar na progressiva realização daquelas ambições? Concluindo: a subsidiariedade parece estar hoje, tal como no passado esteve muitas vezes, ameaçada pela evolução da técnica e, em particular, pela tremenda difusão do conhecimento. A dívida histórica da "cultura" para com o escravo humano continua porém a aumentar, com a cumplicidade das universidades e do "sistema educativo", e sem que se veja claramente o querer saldá-la das "esferas superiores". Mas penso que essa dívida, independentemente da vontade política - que é vontade dos "pastores espirituais" enquanto agentes da "cultura" - acabará mais tarde ou mais cedo por ter de ser paga, Desejavelmente sem purgas nem grande quantidade de sangue derramado, como desejaria certamente, para bem da "cultura" ou melhor, para salvação do seu lado bom, o visionário Agostinho da Silva.

Valdemar J. Rodrigues

Sintra, em Lua Crescente de Maio frio e chuvoso de 2016

terça-feira, 26 de abril de 2016

Nada em excesso! Ou...

... nas palavras sábias da minha avó Ilda Correia, «Tudo o que é demais é moléstia!»

Foto: daqui

O segredo da máxima «Nada em excesso!» - μηδέν άγαν - que, segundo Platão, estava grafada no templo de Apolo, em Delfos, juntamente com outra que dizia «Conhece-te a ti mesmo!», está na compreensão desse "Nada", que não se aplica apenas ao veneno de Paracelso - quando este terá dito sola dosis facit venenum - ou, se quisermos, que não se aplica apenas ao mal ou à coisa má. Pois se fora esse o caso, então esse "Nada" não seria um "Nada": haveria ainda coisas cujo excesso seria aceitável, coisas como a bondade, a sabedoria e a beleza e até, quem sabe, o amor. Nesse caso a máxima grega não poderia ser lida à letra, pois o "Nada" pressuporia um "Nada que fosse mau, feio, falso, impróprio, etc." É claro que para a cultura se tornou mais fácil imaginar o que seja um excesso de mal do que, por exemplo, um excesso de bem, de belo ou de verdadeiro. Aparentemente, tais qualidades nunca são excessivas, e mesmo para Platão e Aristóteles, que tanto amavam o belo e a sabedoria, a máxima até pode parecer contraditória: o que afinal poderia haver de mau ou indesejável no excesso de beleza ou de sabedoria? Sem me alongar demasiado na dialéctica dos contrários, ou na teoria dos extremos, direi apenas que esse "Nada" é mesmo um μηδέν ou seja, um zero. Que o excesso de bondade, por exemplo, é tão inconcebível quanto um excesso de maldade e que, até para a "cultura" não apolínea, a "cultura" do infinito e do infinitesimal que Leibniz, entre outros, ajudou a criar, a ideia de verdade não contempla o respectivo excesso, porquanto a "quantidade" de verdade - ou falsidade - que há em 2+2 = 5 é exactamente a mesma que há em 2+2 = 6, isto apesar do "juízo infinitesimal" que tornou possível julgar o primeiro resultado mais "próximo" da verdade  do que o segundo, ou o segundo resultado mais falso ou "carente" de verdade do que o primeiro. Não me alongarei mais, portanto.

O que eu quero apenas é deixar aqui, para memória futura, um breve comentário que fiz ontem a um dos muitos textos de opinião do facundo prof. Viriato Soromenho Marques, artigo cuja matéria só ilustrativamente me interessa, intitulado Tarefa inacabada.  Sendo curto, o comentário que fiz sintetiza na perfeição o meu manifesto contra o excesso de idealismo; contra aquilo que Borges, na sua inconfundível linguagem, chamou de «panteísmo idealista». Manifesto que faço em nome daquela máxima apolínea que a sabedoria da minha querida avó Ilda tão bem soube conservar e me transmitiu na citada forma. Aí vai então:

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Na paragem do autocarro, a vinda ou não vinda do autocarro depende da força do nosso acreditar, até porque o autocarro é, na linguagem de Borges, um Ur, ou seja, um objecto produzido unicamente pela esperança. Contudo, parece haver demasiados materialistas descrentes, para desgosto de Berkeley. Mas Tlon tem a solução: basta não os desejar. Se a sociedade "desmaterializada" e "descarbonizada" vencer, como o Prof. Soromenho Marques decerto tanto anseia, bastar-lhe-á não desejar pessimistas para que eles simplesmente deixem de existir. É óbvio que o pensar neles ou o falar deles não é o mesmo que desejá-los, mas não o fazer ajuda muito: ninguém deseja viver com o desconhecido ou amar alguém de quem nunca ouviu falar. Há pois que resistir à estranha necessidade dos contrários, que Heraclito tão bem conhecia. Há que transformar positivamente a criatura humana. Só então a "humanidade" realizará o seu projecto, o seu panteísmo idealista e a sua Orbis Tertius. E assim alcançará finalmente as tão desejadas harmonia e sustentabilidade. 

Valdemar J. Rodrigues, terceira Lua de Abril de 2016

Nota: a referência do Borges citado é a seguinte: Borges, J.L. (1983 [1968]) – Tlon, Uqbar, Orbis Tertius. In: Maria da Piedade M. Ferreira (trad.) Jorge Luís Borges - Nova antologia pessoal, pp. 89-104 . Lisboa: Difel

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Que Abril seja, e que seja sempre que um homem quiser. E uma mulher, já agora!


Os "pessimistas" dizem isto e eu, como "pessimista não-estrutural" que sou - não é com facilidade que cedo ao fatalismo ou, se se preferir, o fado não me apraz exageradamente -  concordo com eles.

Os "optimistas", que são muitos e porventura a maioria, acham que podia ser pior. Há um certo "optimismo" com o qual é impossível discordar até se estar morto, e mesmo depois de morto, se pudéssemos falar com tal naipe de "optimistas estruturais", eles não hesitariam em fazer-nos notar a sorte que temos por estarmos mortos, porque a vida é bem mais dolorosa e cheia de trabalhos. Há uma certa "ditadura do optimismo" que careceria talvez de mais atenção científica, da psicologia social por exemplo.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Os cães ladram e passam, mas a caravana fica!


Foto: daqui

Há petróleo em Ajubarrota! 

Leio com aquiescência e sem qualquer obstrução mental as notícias da minha terra. Por vezes sobressalto-me com uma ou outra, mas logo digo para mim mesmo: não escreverás sobre isso! Escrever sobre mundanidades é hoje - sempre o terá sido? - um gesto de alívio absolutamente sujo e inútil. O tronco inabalável das macieiras cobre-se de moscas e fede, mas as macieiras não mudam. Os cães ladram e passam, mas a caravana fica. Incapaz de conter-me, venho mais uma vez incomodar os senhores passageiros, para falar-lhes do absurdo que perscrutei em duas notícias recentes. Um absurdo que não consegui resolver, por mais que tentasse, e creiam que tentei arduamente. Numa delas, datada de Julho de 2010, leio que “Alcobaça pode adoptar carro ecológico FUTI para tornar o concelho mais sustentável”. Magnífico! Embora subsistam bastantes dúvidas quanto à eficácia destes veículos para a redução das emissões de gases com efeito de estufa, dado o estado actual do parque electroprodutor nacional, ainda fortemente dependente da queima de combustíveis fósseis para a produção de electricidade, o que a notícia transparece é, sobretudo, a sensibilidade das entidades envolvidas, públicas e privadas, para as questões relacionadas com o aquecimento global e a alteração climática. Em particular, a autarquia de Alcobaça emerge na notícia como parte interessada em promover uma economia local menos dependente do carbono, facto que constitui, nos dias que correm, um louvável desígnio. A minha alma fica então recolhidamente feliz: é bom que haja desígnios locais, aquilo a que o novo linguajar dá o nome de “estratégias locais de desenvolvimento”. E Alcobaça, pelos vistos, finalmente tem-nas! Mas eis senão quando, na varredura periódica que faço à imprensa deste jardim à beira-mar plantado, me dou com estoutra notícia, por sinal esdrúxula visto não se perceber bem qual a sua verdadeira intenção (isto acontece com muitas das “notícias pagas” que invadem diariamente a nossa paz possível): “Petróleo no Oeste só no próximo ano”. Publicada no jornal Correio da Manhã do dia 20 de Setembro de 2010, nela podia ler-se que a empresa Mohave Oil & Gas, que previa ter começado em Maio de 2010 a perfuração dos primeiros poços de petróleo em Aljubarrota, só iria começar essa exploração em 2011. É claro que, ao ler isto, as primeiras pessoas em quem pensei foram o Sr. Primeiro-ministro e o Sr. Presidente da Câmara Municipal de Alcobaça, duas pessoas empenhadas na luta contra o aquecimento global, e que iriam decerto manifestar imediatamente o seu repúdio perante este atentado carbónico da Mohave Oil & Gas e dos seus parceiros de negócio (o inexcedível Joe Berardo falou por deles) de, não só querer prolongar a indesejável dependência fóssil da economia portuguesa e europeia, devastadora desse insubstituível bem que é o clima, como ainda por cima ousar transformar uma parte importante do território de Alcobaça (e Torres Vedras) num vasto campo de exploração petrolífera! Ora, e agora perdoem-me os estimados passageiros e passageiras dessa carruagem que não anda e cuja paz me desgosta imenso ter de perturbar, mas a pura verdade é a seguinte: não vi até agora nem uma única palavra do governo ou da autarquia sobre o assunto, e muito menos referindo-se-lhe com a negatividade que a situação claramente exigiria. Terá escapado esta notícia aos Srs. Primeiro-ministro e Presidente da Câmara, e aos seus sempre vigilantes assessores? Terá escapado também às oposições? Ou será que a primeira das notícias era bluff, um ardil para ajudar o empresário António Febra a vender alguns popós eléctricos? Será que o país, e em particular a autarquia de Alcobaça, não tem afinal uma estratégia ambiental consistente? Como não consegui esclarecer-me a mim próprio, e como vou tendo dificuldade crescente em adormecer com absurdos deste género na minha cabeça, infelizmente inúmeros neste país que São Bernardo ajudou a fundar, peço-vos que, por favor, me esclareçam. 

Muito obrigado, e desculpem o incómodo. 

Sintra, 11 de Outubro de 2010, publicado aqui.


sexta-feira, 15 de abril de 2016

Segunda Lua de Abril de 2016, em Magnífico Crescente de Portugal


Petrolíferas memórias... ainda bem frescas no essencial

Mohave Oil & Charity

Valdemar J. Rodrigues

Os tempos correm deformados e céleres, e os nigromantes ao serviço anunciam amanhãs que cantam, sulfurosos. No pasa nada porém tudo acontece, nos bastidores. Recrudesce o reverencial temor e a Realidade fende-se de encontro às águas. A ciência está morta: a verdade pertence aos vencedores. Ansiosamente feliz, ou triste, o povo receia a toda a hora uma espécie de holocausto. Nem repara que as notícias são como bumerangues que continuamente lhes ofuscam a visão e alteram o pensamento. A racionalidade morreu. Pelo céu circulam fadas e duendes, piratas e princesas, e nada se ousa ou estranha, pois estranho é aquilo que não se sabe, ou aquilo que já se esqueceu. Tudo se sabe e espera e tudo se guarda na infinita memória googleana: o ilusionismo é a arte maldosamente bela e eficaz que Houdini tão bem conheceu.

É certo que numa Europa minguante ainda está bem presente o afã de lutar contra o aquecimento global, razão de inúmeras taxas e ecotaxas destinadas a proteger o ambiente e a salvar o planeta da destruição causada pelos humanos. Razão também para novas portagens à entrada das cidades, ou para o agravamento das portagens que já existem. Ora, quanto valem anualmente as taxas ecológicas que recaem directamente sobre os consumidores nacionais de produtos petrolíferos, e quanto valem as licenças, taxas e compensações pagas ao Estado nacional pelas empresas exploradoras dos recursos energéticos de origem fóssil? Seria lógico que tais parcelas fossem semelhantes, pois tão responsáveis pelo aquecimento global são aqueles que consomem os combustíveis fósseis como as corporações que os exploram com licença do Estado. Mas a ilusão é a seguinte: o Estado nacional, tão “empenhado” que anda na sua luta descarbonizadora, faz de vilão e cobra a uns e a outros, como de resto faz com produtos como o tabaco e as bebidas alcoólicas. Lastimando os malefícios que causam ao clima os gases esquentadores, ou à saúde e à segurança rodoviária o fumo do tabaco e o vinho, o Estado é o principal dependente e beneficiário de tais vícios, e não parece! Bela ilusão, portanto. E a União Europeia, que vive à custa dos Estados nacionais e dos seus cidadãos, em vez de definir uma estratégia clara para a exploração dos recursos energéticos não renováveis, faz como os Estados nacionais: vive do vício porque o negócio rende, e bastante.

Volto assim à “eterna” Mohave Oil & Gas Corporation, empresa que há mais de duas décadas realiza a prospecção de gás e petróleo na região Oeste de Portugal, mas que ao fim deste tempo ainda não conseguiu organizar, que eu saiba, nenhum sítio da Internet dando conta, por exemplo, dos seus vários estudos e pesquisas, planos ou programas de actividade. Eis uma lacuna evitável, que como é óbvio em nada beneficia a transparência do projecto. Desta vez foi anunciado em Alcobaça pelo Ministro da Economia um investimento nacional de 230 milhões de euros para extrair 8 mil barris de petróleo por dia. Coisa que, fazendo as contas (a 159 litros/barril de petróleo com uma densidade média de 0,81 kg/l isso dá cerca de 1030 toneladas/dia), justifica o desencadear do necessário processo de Avaliação de Impacte Ambiental do projecto, tal como há muito venho defendendo. A questão é que nada é claro quando se vive num país de ilusões e ilusionistas, na sua maioria de fraco quilate. Como será apresentado este “projecto”? Como um todo ou em projectos parcelares, ou por fases? Quantos furos, e quando, serão testados e postos à exploração? Em que locais exactamente, com que capacidade e fazendo uso de que tecnologias (por exemplo, será ou não empregue o processo de Fracking, ou fratura hidráulica), etc, etc. O governo diz agora ter aprovado um “Plano geral de trabalhos de desenvolvimento e produção de hidrocarbonetos” que lhe terá sido apresentado pela Mohave Oil & Gas. Onde estão os pareceres técnicos da administração sobre tal plano? Irá o “plano” ser sujeito a consulta pública? Aplicar-se-lhe-á a directiva europeia de avaliação ambiental de planos e programas (vulgo avaliação ambiental estratégica)?

Tantos planos, normas, leis e regulamentações europeias e nacionais não chegam, pelos vistos, para atender às questões mais fundamentais do nosso desenvolvimento. Algo de estranho despontaria de toda esta história em torno do “ouro negro” nacional, caso ainda estivéssemos lúcidos e fizéssemos bom uso da razão. Nas fotografias da sessão de “anunciação” da coisa em Alcobaça dói ver, por exemplo, a diferença entre o semblante (e até o simples cuidado na indumentária) das autoridades políticas presentes e o dos emissários das corporações envolvidas no negócio. As primeiras curvadas, com ar solene entre o extasiado e o patético, e os segundos hirtos mas incapazes de esconder um certo ar de enfado. Por esta hora deverá andar – presume-se – o autarca alcobacense com enorme diligência a tratar de rever, mais uma vez, o seu Plano Director Municipal, ajustando-o à nova “realidade petrolífera” concelhia, realidade essa que deverá, como todos vaticinam, servir de “alavanca para o desenvolvimento local e regional” (um dia, quando recuperarmos a lucidez, vai perceber-se que já só restam alavancas na economia, nada havendo nela de “peso” para levantar). Dói, mas é o espectáculo possível e, portanto, merecido. O país infantilizado e bruto não merece mais do que fábulas com príncipes e princesas, músicas de embalar e histórias da carochinha com muitos pais natais para entreterem as criancinhas. Boa noite, e que a Mohave Oil & Gas tenha piedade de nós, e do ambiente também.

Sintra, 4 de Setembro de 2012

Publicado aqui.