Da
economia informal – Parte I de II
Quando
se fala de economia informal há que notar o ilimitado desse
informal, onde cabe qualquer actividade humana não controlada pelo
Estado. Ora, o Estado pode achar, por exemplo, que cortar as unhas ou
ficar com uma criança à guarda é algo que exige qualificações
especializadas, dados os riscos que a actividade envolve para a
segurança, o ambiente, etc. As pessoas, que informalmente
cortavam as unhas umas às outras, ou os avós, que informalmente
ficavam à guarda do neto enquanto os pais iam trabalhar, passam a
estar em situação de ilegalidade, a menos que façam as devidas
formações e obtenham as obrigatórias licenças. É o que está a
acontecer com a agricultura informal: os pequenos agricultores já
têm de fazer um curso de formação para poderem adquirir uma
embalagem de pesticida. Muitos não o farão, por razões diversas,
incluindo a de acharem que o Estado não tem de meter-se onde não é
chamado, e que seguramente não é ele quem melhor conhece, ou quer
mais bem. aos pés da mulher a quem o companheiro gratuitamente corta
as unhas, à criança com quem os avós ficam gratuitamente enquanto
a mãe vai com o namorado ao cinema, ou à nesga de terra há muito
cultivada para sustento da família. O facto de haver gratuitidade e
trocas de bens e serviços sem intermediação do dinheiro – quando
a troca não é possível no momento, a memória sempre funcionou
como reserva de valor – é um benefício a considerar. Se há
bancos bons e maus, certamente também haverá economia informal boa
e má. A má passa pelos negócios das sociedades offshore,
pela lavagem de capitais que, por exemplo, os negócios do futebol
propiciam; pela excessiva informalidade com que às vezes o Estado
trata dos negócios públicos, pela corrupção, etc. Para não
dar tiros nos pés, o povo deve pois precaver-se contra as cruzadas
do Leviatã contra a economia informal, em que o “informal”
aparece como o mal a combater. Porque não há só uma economia
informal boa: há também uma economia informal absolutamente
necessária para a sustentabilidade e o bom funcionamento de qualquer
sociedade humana. É a ela que se deve o amortecimento do impacto
social dos históricos empreendimentos do Leviatã.
É
normal os economistas reconhecerem, baseando-se por exemplo na
análise de Pareto, a necessidade de alguma informalidade na
economia. Presos que estão aos números – e muitos à crença de
que nada há melhor do que eles, os números, para analisar e
representar a economia – asseveram, por exemplo, que se a economia
“paralela” descer abaixo dos 15% do PIB a economia estagna, ou
que se subir para lá dos 25% o sistema fiscal corre o risco de
colapsar. São análises úteis, potencialmente moderadoras do
devorismo estatal. Mas são-no apenas potencialmente, pois têm
limitações que os governos e as agências inter-governamentais
podem não querer reconhecer – e geralmente não reconhecem. O que
significa a persistência do risco de que o pastor-Leviatã, ameaçado
pela fome, coma as próprias ovelhas, o que neste caso significa
tanto formalizar quanto consentir na informalidade da
economia para lá do que deve, para tal manipulando a seu favor, se o
deixarem, os números e as análises económicas. A primeira das
limitações advém do conceito de economia paralela, que
muitos economistas e políticos preferem ao de economia informal
(na
prática, tomam-nos por equivalentes).
Tal conceito sugere que a actividade informal tem
geralmente paralelo na economia formal, e é a partir desse paralelo
– e aqui tem-se a segunda das limitações – que os economistas
valorizam monetariamnte os bens e serviços produzidos na economia
paralela.
Da
economia informal – Parte II de II
A
metodologia de avaliação do peso da economia informal tem
pois, pelo menos, duas grandes limitações: por um lado parte do
princípio de que a actividade informal tem paralelo na economia
formal capaz de proporcionar a mesma utilidade, satisfação, etc.
e, por outro, assume que os bens e serviços dessa actividade têm
valor de mercado, valor com base no qual podem ser correctamente
valorizados. Os números valem por isso o que valem, e só
grosseiramente pode dizer-se que reflectem a realidade económica de
um país. Pior ainda: pouco ou nada dizem relativamente à qualidade
da informalidade em causa: agregam, tal como o faz o PIB em relação
a toda a economia, a informalidade má, a boa e a indispensável a
uma economia sã e sustentável. O que significa que quando se diz,
por exemplo, que em Portugal há demasiada economia informal, um
valor por hipótese acima dos 25% (os dados oficiais apontam para um
valor próximo dos 27% do PIB ou seja, cerca de 46 mil milhões de
euros que anualmente escapam à tributação), isso não é
necessariamente nem mau nem verdadeiro; há que ter presente e
salvaguardar a parte boa e indispensável dessa informalidade, a
parte que, por infeliz coincidência (ou para alguns talvez não), é
também a mais fraca ou seja, a que fiscalmente é mais fácil de
atacar.
Por
outro lado, a numerologia
agregadora,
estatal e economista, permite manter a eterna dúvida sobre o real
significado do elevado peso
da economia informal, e que pode até ser bom sinal; sinal por
exemplo de que o inconsciente colectivo dos portugueses guarda
consigo algo de valioso; algo que Agostinho da Silva decifrava: que o
único objectivo moralmente aceitável da economia é o de suprimir a
necessidade do trabalho humano, para tal fomentando a gratuitidade e
a dignidade do viver colectivo. Ou seja, o contrário precisamente do
que ela faz, com a providencial assistência do Estado. Há o risco,
como disse anteriormente, de o pastor-Leviatã, ameaçado pela fome e
habituado a uma vida faustosa, não hesitar em comer as próprias
ovelhas. De
uma forma ou de outra foi aquilo que, podendo, sempre fez quando se
viu encurralado. O mal, ao que parece, é hoje geral, e é notório o
esforço estatístico-económico para o tentar relativizar,
nomeadamnte por via das análises comparadas. Mas talvez neste
capítulo da informalidade económica, tal como reconhecidamente no
da improvisação e da crónica falta de pontualidade, os portuguses
estejam à frente de qualquer coisa
sem o saberem, e sejam por isso alvo das invejas e inquietações de
burocratas que falam em nome de “Bruxelas”, “Berlim”,
“Lisboa”, etc.
Era agora preciso perceber exactamente do quê
estamos à frente, separar o trigo do joio e saber com quem podemos
realmente contar nessa caminhada pelo futuro que a nós deve
pertencer. Se não pudermos ou, pior ainda, se não quisermos saber e
compreender, e ajudar também os outros a fazê-lo, é provável que
uma vez mais o pior aconteça; que a culpa permaneça o pilar e motor
da cultura que tem sido, aos olhos sempre de uma liberdade
vencida. Agostinho sabia haver uma dívida
histórica da cultura para com o escravo humano, e que essa dívida,
que a cultura tardava em saldar – e que continua a aumentar, sob o
olhar cúmplice de economistas e políticos – teria de ser paga
mais cedo ou mais tarde, porque de outra maneira a cultura acabaria
por não ter mais como justificar-se moralmente. O saldar da dívida
– que era a libertação desse escravo – podia demorar mais ou
menos tempo, ser um processo mais ou menos difícil, penoso ou
violento, mas era para ele algo inevitável: era a conditio
sine qua non
da cultura.
Valdemar
J. Rodrigues