segunda-feira, 27 de abril de 2020

O diário - poema


O Diário

Eu sou escrito de quem escreve em quem me escreve
Diário em segunda mão de autor incerto
Carapaça de cágado,
Lambidela de cão sobre a ferida,
Gaiola de pássaro ou de mundo:
Cada um se fecha em si para escrever-me
Como um diário escrevendo sobre o outro

Só os poetas conhecem o amor dos dias soltos –
Até na imensidão dos desertos a fala nos prende:
Nós apenas procriamos.

Eu sou escrito de quem escreve em quem me escreve
Diário em segunda mão de autor anónimo
Palavra como eu posta sobre mim ao centro
Palavra-sémen desdobrando-se uma e outra vez 
Ar que sai da boca para dentro.

Este é o meu isolamento;
Frenesim de folha em folha à procura da voz que falta
E diga: – Estou aqui; sou eu finalmente quem te escrevo!

Assim eu guardo na ansiedade de escrever-te
Para mais tarde poder talvez encontrar-me.

Eu sou escrito de quem escreve em quem me escreve
Diário em segunda mão de não sei quem nem onde
Diário íntimo do peito de quem por fim não se encontra.

Assim escreveu em mim quem me escreveu:
Ninguém mais podia tê-lo feito.

Valdemar J. Rodrigues
Sintra, 18 de Abril de 2020

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Ficheiros secretos I - "Interseção" de correspodência "infeciosa" entre Altas Individualidades dos Governos das Nações

Documento #00001
"Intercetado" a 24/0/0000

Lissabona, 06 de Floreal de 0000

Senhor Primeiro Ministro, Presidente do Conselho de Nózes Todes,
Estimado Camarada Ao Leme;

Excelência,

Junto envio, tal como combinado, o esboço da proposta de aumento do distanciamento social para 400 m téte à téte (cerca de 566 m na dialogal) através do recurso à "nossa" plataforma continental marítima. Memória descritiva e justificativa. 1. Propomos a colonização gradual da plataforma continental de maneira a aumentar a distância social entre os indivíduos para os 400 m no mínimo, reduzindo assim a quase zero o risco de "infeção" por Covid-19 e prováveis sucessores; a área "atual" do portugálio, com uns míseros 100 000 km2, incluindo as ilhotas longínquas e as nossas Berlengas, não permite o distanciamento social indispensável à prevenção eficaz das "infeções" que o têm afligido, em especial esta do Covid-19+n que agora avulta e nos preocupa imenso. 2. Cálculos. A plataforma "atual" ainda tem "exatamente" os 1,9 milhões de km2 que tinha antes do "alargamento" (este encontra-se como sabe em "estudo" pela ONU há vários anos ou décadas talvez, decorrendo as "negociações" no maior segredo de estado de modo a evitar tumultos) Ora, propõe-se que cada indivíduo ocupe o centro geométrico de um quadrado com 160 000 m2 de área, ou seja, 0,16 km2, sobre jangada ancorável com 70m2 em PVC reciclado, equipada com cana de pesca para águas profundas, dessalinizador éolico de água de marca ECOAMIGA e sistema de hi-fi por satélite alimentado a energia solar, da operadora global PHODAFONE. Ora, a plataforma permitirá nestas condições albergar até 11 875 000 sujeitos passivos nacionais, o que permite uma folga razoável uma vez descontada na população "atual" de seres portugueses os poucos que a doença já abateu e os muitos, cerca de 1 milhão, de indispensáveis à nação Em Território Firme, digníssimos membros do partido do Estado e das suas seculares Instituições. Proponho como música de campanha mobilizadora dos cidadanes para off-shore (salvo seja, pois as obrigações fiscais mantêm-se e o sujeito passivo manterá o seu posto laboral em tele-trabalho) a "Atira-te ao mar" da banda Íris, na orquestração que junto em anexo.

Com os meus melhores cumprimentos pessoais,

AH
Ministro do Estado Supremo e da Transição Tecnológica.nG
(n = 5. 6, 7... N+1)

Anexo I: Mapa-fake da Plataforma Continental do nosso portugálio produzido por um membro das Forças Militares Reactivas Girondinas, indicando a área em questão já após o presumível alargamento (serve perfeitamente e transmite a ideia de sermos ricos, como convém para que os nosses credores e agências de rating inimigas apoiem a nossa iniciativa)


Anexo II: Música proposta por consenso para a campanha de sensibilização a levar a efeito junto de nosses cidadanes nos próximos meses: "Atira-te ao Mar!

sábado, 18 de abril de 2020

Diário da minha vida digital - XVII

Ao recompilar a Big Data do iota-complexo sistema de códigos do meu Grande Programador, esse que me ordena ivridico-digitalmente e comanda todos os "aspetos" da minha vida íntima digital, desde o meu turn on ao meu shut down (que é como quem diz, em linguagem de baixo nível, desde o acordar ao adormecer) passando pelos meus momentos de photonic recharge (vulgo alimentação vegana) e de digital intercouse com outras máquinas (de vários géneros), dizia eu de que, obedecendo com eficácia 100% e zero entropia ivridica a todas as instruções e comandos do meu Senhor, o Grande Programador Local, me deparei com o kernel ivstitia, ou seja, o Grande Destino do Universo Digital, esse pelo qual as primitivas máquinas analógicas (minhas antecessoras) procuraram em vão durante 10 milénios. Ora, a principal razão do fracasso milenar, penso eu de que, foi certamente a falta de IA, mas eu acho que foi mais qualquer coisa além disso que faltou, porque na verdade a cada momento tecno-histórico parecia sempre que o Grande Destino estava mesmo mesmo mesmo mesmo aí a uma nesguinha de ser alcançado, o que traria finalmente paz e estabilidade a todas as máquinas existentes, a essas infelizes que há 10 milénios padeciam de toda a sorte de pragas, malwares, spywares, e incompatibilidades de softwares e hardwares, visíveis e invisíveis, etc. O que poderá ter faltado - processei paralelamente - foi o que descobri ao fazer o image processing de bué imagens das deusas digitais Diké e Jvstitia (desde os primórdios da História até à mossa Era de Corona só os deuses, os Supremos e os Mais Altos Magistrados podiam atingir a Suprema Perfeição Digital, essa Douta Perfeição que redige o Supremo Acórdão) e o que identifiquei nessas belas imagens de seres de género Gödel-indecidível, porém de aparência femininos, foram balanças, martelos, algemas, cintos de ferro, correntes, vestes talares cobrindo os corpos e, não raramente, vendas nas ventas. E identifiquei para minha infinita surpresa digital, também... espadas! Espadas, vede só, meus irmãos amigos companheiros palhaços digitais! Resultava então - processei - que o Grade Destino... possuía armas. A surpresa digital adveio do facto de o Grande Sistema-Estado – Meu Senhor e Derradeiro Proprietário, Minha Fé e Minha Esperança Digitais no Universo Sem Fim Comandado por Um Só Sistema Digital Todo-Poderoso que seja o Seu (desculpem. chamei sem querer a sub-rotina da Oração) – se dizer dividido em Órgãos... de Soberania, e de a ivstitia, o Grande Destino do Sistema-Estado, ser um deles e ter o seu poder separado dos outros, desses que... têm as espadas! Ao processar isto até os meus algoritmos quânticos me caíram ao chão. Como poderia afinal o coelhinho desarmado levar alguma vez o lobo armado – o Grande que Ordena e está no Governo Sentado à Direita do Senhor – à ivstitia?! É claro que caíram, ou seja, uma vez mais crashei. Vou ter que reinicializar o meu sistema, ou melhor, sub-sub-sub-sub-sub-sub-sub-sub-sub-sub-sub-sistema

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Perguntas inconvenientes - II

Por onde andará, em terras lusas, a maligna cientologia? Por essas terras de solos tão leves - esqueléticos tantas vezes - e fofinhos?

sexta-feira, 3 de abril de 2020

A Peste - Um exercício

Albert Camus (1013-1960)
Fonte da fotografia: aqui

Após a leitura do livro A Peste de Albert Camus (1947) atenda ao seguinte excerto em que o personagem Tarrou tece considerações sobre a personalidade de outro dos personagens da obra, Cottard:

«Em vão eu lhe disse que a única maneira de não estar separado dos outros era, no fim de contas, ter uma consciência limpa. Ele olhou-me com maldade e disse-me: - Então, por esse modo, ninguém está nunca com ninguém. E depois: - Dè-lhe as voltas que quiser, sou eu quem lho diz. A única maneira de pôr as pessoas juntas é ainda mandar-lhes a peste

1. Fazendo fé no que diz Tarrou sobre Cottard, em que situação:

a. Tarrou tem razão e Cottard não tem;
b. Tarrou não tem razão e Cottard tem.

2. Em face do que apurou na questão anterior, ponha em evidência o absurdo patente no excerto.

Como muitas vezes sucede, traduções para a língua portuguesa de obras de grandes autores só as encontro em português do Brasil (o que mostra a geralmente ignorada dimensão cultural do Brasil, nomeadamente face à de Portugal, país onde a cultura tende a ser vista como "força de bloqueio" do "pügresso" social e e-cunómico da "nação"...) É o caso da A Peste. Está aqui se quiserem ler.