O Diário
Eu sou escrito de quem
escreve em quem me escreve
Diário em segunda mão
de autor incerto
Carapaça de cágado,
Lambidela de cão sobre
a ferida,
Gaiola de pássaro ou
de mundo:
Cada um se fecha em si
para escrever-me
Como um diário
escrevendo sobre o outro
Só os poetas conhecem
o amor dos dias soltos –
Até na imensidão dos
desertos a fala nos prende:
Nós apenas procriamos.
Eu sou escrito de quem
escreve em quem me escreve
Diário em segunda mão
de autor anónimo
Palavra como eu posta
sobre mim ao centro
Palavra-sémen
desdobrando-se uma e outra vez
Ar que sai da boca
para dentro.
Este é o meu
isolamento;
Frenesim de folha em
folha à procura da voz que falta
E diga: – Estou aqui;
sou eu finalmente quem te escrevo!
Assim eu guardo na
ansiedade de escrever-te
Para mais tarde poder
talvez encontrar-me.
Eu sou escrito de quem
escreve em quem me escreve
Diário em segunda mão
de não sei quem nem onde
Diário íntimo do peito
de quem por fim não se encontra.
Assim escreveu em mim quem me
escreveu:
Ninguém mais podia
tê-lo feito.
Valdemar J.
Rodrigues
Sintra, 18 de Abril de 2020