O segredo da máxima «Nada em excesso!» - μηδέν άγαν - que, segundo Platão, estava grafada no templo de Apolo, em Delfos, juntamente com outra que dizia «Conhece-te a ti mesmo!», está na compreensão desse "Nada", que não se aplica apenas ao veneno de Paracelso - quando este terá dito sola dosis facit venenum - ou, se quisermos, que não se aplica apenas ao mal ou à coisa má. Pois se fora esse o caso, então esse "Nada" não seria um "Nada": haveria ainda coisas cujo excesso seria aceitável, coisas como a bondade, a sabedoria e a beleza e até, quem sabe, o amor. Nesse caso a máxima grega não poderia ser lida à letra, pois o "Nada" pressuporia um "Nada que fosse mau, feio, falso, impróprio, etc." É claro que para a cultura se tornou mais fácil imaginar o que seja um excesso de mal do que, por exemplo, um excesso de bem, de belo ou de verdadeiro. Aparentemente, tais qualidades nunca são excessivas, e mesmo para Platão e Aristóteles, que tanto amavam o belo e a sabedoria, a máxima até pode parecer contraditória: o que afinal poderia haver de mau ou indesejável no excesso de beleza ou de sabedoria? Sem me alongar demasiado na dialéctica dos contrários, ou na teoria dos extremos, direi apenas que esse "Nada" é mesmo um μηδέν ou seja, um zero. Que o excesso de bondade, por exemplo, é tão inconcebível quanto um excesso de maldade e que, até para a "cultura" não apolínea, a "cultura" do infinito e do infinitesimal que Leibniz, entre outros, ajudou a criar, a ideia de verdade não contempla o respectivo excesso, porquanto a "quantidade" de verdade - ou falsidade - que há em 2+2 = 5 é exactamente a mesma que há em 2+2 = 6, isto apesar do "juízo infinitesimal" que tornou possível julgar o primeiro resultado mais "próximo" da verdade do que o segundo, ou o segundo resultado mais falso ou "carente" de verdade do que o primeiro. Não me alongarei mais, portanto.
O que eu quero apenas é deixar aqui, para memória futura, um breve comentário que fiz ontem a um dos muitos textos de opinião do facundo prof. Viriato Soromenho Marques, artigo cuja matéria só ilustrativamente me interessa, intitulado Tarefa inacabada. Sendo curto, o comentário que fiz sintetiza na perfeição o meu manifesto contra o excesso de idealismo; contra aquilo que Borges, na sua inconfundível linguagem, chamou de «panteísmo idealista». Manifesto que faço em nome daquela máxima apolínea que a sabedoria da minha querida avó Ilda tão bem soube conservar e me transmitiu na citada forma. Aí vai então:
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Na paragem do autocarro, a vinda ou não vinda do autocarro depende da força do nosso acreditar, até porque o autocarro é, na linguagem de Borges, um Ur, ou seja, um objecto produzido unicamente pela esperança. Contudo, parece haver demasiados materialistas descrentes, para desgosto de Berkeley. Mas Tlon tem a solução: basta não os desejar. Se a sociedade "desmaterializada" e "descarbonizada" vencer, como o Prof. Soromenho Marques decerto tanto anseia, bastar-lhe-á não desejar pessimistas para que eles simplesmente deixem de existir. É óbvio que o pensar neles ou o falar deles não é o mesmo que desejá-los, mas não o fazer ajuda muito: ninguém deseja viver com o desconhecido ou amar alguém de quem nunca ouviu falar. Há pois que resistir à estranha necessidade dos contrários, que Heraclito tão bem conhecia. Há que transformar positivamente a criatura humana. Só então a "humanidade" realizará o seu projecto, o seu panteísmo idealista e a sua Orbis Tertius. E assim alcançará finalmente as tão desejadas harmonia e sustentabilidade.
Valdemar J. Rodrigues, terceira Lua de Abril de 2016
Nota: a referência do Borges citado é a seguinte:
Borges, J.L. (1983 [1968]) – Tlon, Uqbar, Orbis Tertius. In: Maria da Piedade M. Ferreira (trad.) Jorge Luís Borges - Nova antologia pessoal, pp. 89-104 . Lisboa: Difel