Fonte: daqui
Ahistória
é uma velha matreira. Apanha as moscas com mel e não com vinagre.
Pergunta-se: "Será que sempre houve excelentes profissionais em
toda e qualquer profissão?" E a resposta só pode ser um sonoro
"Claro que sim!" Mas convém não esquecer Gauss
e
o Teorema
do Limite Central:
"Se tomada aleatoriamente uma amostra suficientemente grande de
profissionais de uma dada profissão e medida de alguma maneira
razoável a qualidade do desempenho profissional de cada um deles,
então é expectável que a qualidade nessa amostra se distribua
segundo uma curva normal ou gaussiana. Por outras palavras, uma
maioria de profissionais terá um desempenho médio ou mais ou menos
próximo da média de desempenho (isso vai depender do desvio padrão
da amostra), e uma minoria terá ou um desempenho excelente ou um
desempenho muito mau. Ora, a história fá-la a maioria e não as
minorias, designadamente a dos profissionais excelentes.
Profissionais cujos maiores inimigos na classe profissional não são
os muito maus, que são poucos como eles e temem-nos, mas os médios,
que são a maioria. Qualquer política interessada no facere
da
classe profissional deve pois dirigir-se preferencialmente à média
e ter por referência o profissional médio, sob pena de virar contra
ela a maioria dos profissionais da classe, que são médios. O médio,
que nem é muito bom nem muito mau, não é aquele que simplesmente
nega ou aceita a política; é mais o que se presta à negociação, ou
seja, que se dispõe à retórica do convencimento: é ele que se
dispõe a convencer e a ser convencido, ele que não é o
profissional excelente e até geralmente o teme, pois é o que põe
em evidência a falta de qualidade do seu deempenho profissional, ou
a distância a que ele está da excelência. Ora, o autor das
políticas não tem de ser – nem o é geralmente – um
profissional excelente da classe que interessa a tais políticas. Nem
sempre é, por exemplo, um médico ou um professor excelente, e
frequentemente nem sequer domina suficientemente o saber técnico
necessário ao exercício das profissões cujas actividades
interessam à sua política. É, na melhor das hipóteses, um
profissional excelente entre médios e, na pior, alguém que não
domina o saber técnico profissional. Poderá chamar si as questões
técnicas para as tentar resolver e poderá munir-se de pareceres
técnicos de profissionais excelentes, mas se acaso não der
principalmente ouvidos aos representantes da maioria dos
profissionais o mais certo é não ter grande sucesso; em particular
as soluções desafiadoras do status
quo
profissional ou que impliquem melhor desempenho profissional serão
provavelmente recebidas com desagrado pela maioria.
Os pareceres técnicos de colegas excelentes poderão ser percebidos como carentes de realismo,
opiniões de quem vive nas nuvens ou não conhece bem a realidade
da
profissão. Os representantes da classe com quem o político negoceia
devem ser representantes da maioria, que são os profissionais
médios, pois de outra maneira seriam representantes de uma facção
minoritária
da
classe, ou muito boa ou muito má profissionalmente, e o que fosse
acordado (ou concertado)
nessa situação a maioria provavelmente não o aceitaria. A
linguagem do político é, historicamente, a jurídica, e o objectivo
da política é a lei, o dar seguimento
à
ordem por via do convencimento e não pela força ou pela violência,
o que teria custos incomparavelmente maiores. Vejamos o exemplo de
uma questão susceptível de negociação: a introdução da
Inteligência Artificuial (IA) na prática profissional corrente dos
médicos (podia também ser o da introdução do e-learning
na prática profissional dos professores, ou, relativamente a estes
ainda, a questão não propriamente tecnológica da flexibilidade
curricular). Os médicos médios, representativos da maioria da
classe médica,
temerão
desde logo pelo emprego e pelo corte de salários, porquanto se forem
as máquinas em vez deles a diagnosticarem doenças ou a proporem
terapêuticas, parece que deixa de haver razões substanciais capazes
de justificarem a sua presença aí no "sector" da saúde.
Por seu lado, o médico excelente dirá que os algoritmos de IA não
nascem do nada, que carecem de constante actualizações dada a
evolução da ciência médica, e que se algo de importante eles
podem aprender
é com o trabalho dos profissionais excelentes da medicina, i.e.,
com o trabalho da minoria que, democraticamente,
não representa a classe médica. O político, sabendo disso ou não,
há uma coisa que sabe certamente: se conseguir convencer os representantes da classe i.e.,
os médicos nem péssimos nem excelentes, de que os seus empregos e
salários não estão em risco, mas somente a possibilidade de
fazerem diagnósticos mais rápidos e certeiros, ou seja, de fazerem
melhor o trabalho que fazem com menos necessidade de esforço
próprio, então a introdução da IA na prática médica corrente
poderá tornar-se a breve trecho uma realidade jurídica. A maioria
dos médicos médios ficará contente se e enquanto a introdução da
IA não afectar os seus salários e não puser em risco os seus
empregos, e os médicos que vierem a seguir, como costuma dizer-se,
que tratem de fechar a porta; desde logo eles poderão nem sequer
vir, ou vir em situação profissional bastante mais precária ou
desinteressante, porquanto as tarefas essenciais do médico estarão
já legalmente entregues aos algoritmos inteligentes. Por um
lado, suave e docemente, a maioria dos médicos (médios) é levadaa trair os futuros jovens médicos, nomeadamente negando, a alguns deles pelo menos, a
possibilidade de poderem tornar-se aí no “sector” profissionais excelentes; por outro, poupa-se a
maioria dos médicos ao esforço de tentarem ser melhores médicos,
desejavelmente médicos excelentes. A prazo mais ou menos curto os
sistemas de IA dos SNS aprenderão somente com médicos médios, pois
os médicos excelentes tenderão, por falta de estímulos e até
perseguição, a ser cada vez menos, afastando-se nomeadamente de um
SNS cujos colegas médios os tendem ver menos como indispensáveis do
que como uma ameaça à profissão. A lei do menor esforço aplicar-se-á, como
parece ser natural: a tendência dos médicos médios, crescentemente
poupados à competição com os médicos excelentes, será para
piorarem e não para melhorarem o seu desempenho profissional. E as
comparações entre diferentes SNS serão gradualmente comparações
entre coisas geralmente más ou medíocres, e não entre coisas onde
o mau, o médio e o excelente podiam aparecer. Dir-se-á então que
os melhores médicos tenderão a mudar-se para o "privado"...
só que isso é não compreender que quando o "privado"
aumenta de tamanho ele acaba por tornar-se "público",
e
o
"privado" tem afinal as mesmas ambições históricas de
grandeza
do que o "público". A coisa só funcionaria relativamente
bem se e enquanto houvesse de facto verdadeira concorrência
entre muitos privados operando aí no "sector" da saúde;
perante grandes empresas do sector da saúde operando no mercado nas
mesmas condições legais das pequenas estas tenderão a desaparecer,
e os monopólios privados da saúde resultantes acabarão por sofrer dos mesmos
males do que os públicos SNS; neles haverá também uma maioria de
profissionais médios representativa da classe que, face aos desafios
da profissão, designadamente tecnológicos, negociará com os CEO da empresa
da mesma forma, temendo as propostas dos médicos excelentes e vendo
a sua presença aí mais como ameaça do que como exemplo a seguir
rumo à excelência. O que tende da mesma maneira a afastá-los daí.
É certo que enquanto persistir a discussão estéril "público"
versus
"privado", os "privados" da saúde haverão de
extorquir biliões a uma "classe média" da sociedade
confrontada com a crescente degradação dos serviços "públicos"
de saúde e crente de que o "privado” é melhor do que o
“público", pois é – julga – para lá que vão os médicos
excelentes... Na verdade é globalmente a saúde que perde. Os
médicos excelentes, os poucos que ainda tiverem condições para o
ser, tenderão a diminuir e estarão, na melhor das hipóteses, no estrangeiro ou ao
serviço de famílias muito ricas. Veja-se então a ironia: nem o estado nem a
grande empresa do negócio da saúde tendem a valorizar os
profissionais excelentes, mas somente uma certa elite
de pessoas do estado ou da grande empresa económica, que pode até
bem ser uma certa elite
accionista da grande empresa do negócio global da saúde. Um certo
jacobinismo histórico, crente dos opostos e de que a inteligência
humana é mercadoria como outra qualquer – crente nomeadamente de
que ela tem um preço e pode ser obrigada a vender-se – poderá
perseguir os médicos excelentes e opor-se à protecção que as
famílias ricas lhes dão, e decerto poderá contar para isso com o
apoio da mediocridade profissional e até do chamado "povo".
Face a um cenário destes ocorre perguntar: quem serão afinal os
grandes culpados da degradação dos serviços de saúde? Ou da
precariedade profissional dos jovens chegados à profissão? Serão
por acaso os médicos excelentes? A tecnologia? As famílias ricas
que dão protecção aos médicos excelentes? A democracia? E que tal
a mediocracia
corporativa ou de classe?
Post scriptum: Sim, eu sei que há a curva da "qualidade humana" do Pareto e a lenda das ervilhas. A história é um manancial de lendas. A questão é que a curva do Pareto é histórica, e isso só piora as coisas. É já a curva da mediocridade quando o mais notável dos medíocres lidera, como se ele fosse a vagem fora da ervilheira.
Post scriptum: Sim, eu sei que há a curva da "qualidade humana" do Pareto e a lenda das ervilhas. A história é um manancial de lendas. A questão é que a curva do Pareto é histórica, e isso só piora as coisas. É já a curva da mediocridade quando o mais notável dos medíocres lidera, como se ele fosse a vagem fora da ervilheira.
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