Começo por confessar que não consegui descobrir a lógica do não emprego do artigo "o" nas habituais referências que se fazem a(o) Portugal. Dá-me ideia de que se dizemos a Alemenha ou a França também deveríamos dizer o Portugal, tal qual dizemos o Reino Unido, o Brasil ou o Paraguai. Apesar da dúvida, que até hoje permanece insolúvel no meu espírito, parece-me claro que uma coisa é, por exemplo, a Alemanha, o Reino Unido ou o Portugal, e outra, bem diferente, os alemães, os portugueses e... os britânicos. Por alguma razão que não averiguei devidamente o gentílico reinunidenses não foi o escolhido.
E porque são estas questões de linguagem tão cruciais? Ora, por exemplo, porque quando o Portugal se ausenta e vai ao estrangeiro jogar à bola não são os portugueses nem é o Portugal que o fazem, isto apesar de o dizer da linguagem afirmar o contrário ou seja, que é isso que acontece. Foi essa ilusão cultural que no passado tornou possíveis as grandes empresas de guerra dos Estados, de modo que quando, por exemplo, o Portugal entrava em guerra, todos os portugueses e portuguesas entravam em guerra, no sentido em que eram de uma forma ou de outra mobilizados para ela. Quanto ao inimigo, se fosse por exemplo a Castela (outro caso de não uso do artigo, desta vez no feminino) isso significava que todos os castelhanos e castelhanas eram de alguma maneira inimigos. Findas as guerras militares de conquista, a guerra manteve-se, militar e económica, e com ela o espírito milenar de inclusão assimétrica da cultura. Mais prosaica, dir-se-á, é a dívida do Portugal, da Alemanha, etc., que, por ser pública, é de todos e, sem ponderação, de cada um dos portugueses e das portuguesas, alemães e alemãs, etc. Tal como o PIB per capita ou as emissões do Carbono fóssil, causadoras do aquecimento global e da alteração climática, são do Portugal, da Alemanha, etc., na medida em que são, em abstracto e sem ponderação, de todos e cada um dos portugueses, alemães, etc., até mesmo daqueles que nunca foram proprietários de refinarias ou companhias petrolíferas, e até daqueles que nunca tiveram automóvel e sempre andaram de bicicleta. E isto tudo apesar da globalização e dos mercados transnacionais que regem na economia global. É assim porque, graças à ilusão cultural proporcionada e difundida pela linguagem, todos são levados a pagar pelo prejuízo que só alguns causam e, quando se trata do benefício, cada um recebe apenas a sua dose de orgulho, e eventualmente uma ou outra migalha sempre muito bem ponderada pelo mérito, pelo esforço ou pela sorte apostadora. É claro que há sempre em qualquer mobilização do "nós" um pequeno grupo de "patriotas" cujo "ser" excepcional justifica que entre si repartam o grosso dos benefícios que há para repartir.
É vincadamente assim quando o clube vence ou perde um jogo, pois todos os envolvidos ganham ou perdem financeiramnte com isso à excepção dos adeptos que, enquanto "praticantes", é seguro que perdem sempre: além do tempo, o dinheiro das quotas e dos bilhetes. Já quando o clube ganha, é certo que recebem uma dose extra de orgulho por pertencerem ao clube e vestirem as suas cores. (Além disso, todos os envolvidos à excepção dos adeptos praticantes e dos dirigentes do clube podem mudar de clube, mas essa seria uma outra história.)
A história aqui tem a ver com ganhos e perdas para todos e cada um sempre que há mobilizações do "nós" colectivo. Veja-se, por exemplo, o caso do sistema financeiro que, apesar da sua evidente transnacionalidade e globalização, continua a ser do Portugal, da Alemanha, dos Estados Unidos da América, etc. e isso unicamente para que, em caso de bancarrota, todos paguem pelo mal que alguns causaram, e do qual grandemente beneficiaram. Quanto aos dividendos que o "sistema financeiro nacional" proporcionou e proporciona, só alguns têm direito a eles, fruto do mérito, do esforço, da sorte apostadora, para além do peso accionista. A técnica da ilusão assimetricamente inclusiva é tão velha que é estranho alguém chegar à idade adulta sem dar por ela e sem saber o que ela geralmente significa. É caso para perguntar: o que andará a escola a fazer? Ora, provavelmente a ensiná-la para assegurar que se mantém. As disciplinas do direito, da história e da economia são grandemente responsáveis pela perpetuação da ilusão, sem a qual acreditam que a cultura não pode subsistir. E a ilusão, com rédea solta e altamente patrocinada pela escola da cultura, permite sem assombro dizer e escrever coisas tão fantásticas quanto esta: «Sei que dificilmente alguém ganha a Portugal», isto a propósito do futebol e sem que se dê conta de que Fernando Santos, ele próprio vítima da ilusão - ou talvez comprometido com ela - está a falar apenas de uma «selecção masculina de jogadores de futebol de 11 com a nacionalidade portuguesa», a qual, talvez sem o querer e com a complacência jornalística, confunde simultaneamente com o Portugal e com os portugueses e as portuguesas (estas, em particular, deviam sentir estranheza por não estarem representadas naquilo que se diz ser uma "selecção nacional", mas o facto de não sentirem estranheza só comprova o poder e a eficácia da ilusão), naquilo que dir-se-ia tratar-se de uma ilusão derivada ou de segunda ordem.
Mas o pior de tudo é ainda a persistência na "cultura" de criaturas que acham que quem repara na ilusão é porque não é patriota; é porque é de direita ou de uma extremidade política; é porque não é amigo do povo, é porque, enfim, é um porco, um racista de merda .. Sim, desconheço completamente quem seja o presumível Alexandre não sei das quantas, tal como ele, seguramente, me desconhece. E sim, preocupam-me os excessos e a violência verbal que se vêm tornando tão habituais nas redes sociais e nas caixas de comentários dos jornais. Pois talvez indiquem a emergência do velho nazismo cultural - ou seja, a emergência de vontades colectivas que vêem com interesse a eliminação dos seres humanos excedentários, inúteis ou supérfluos - destarte também se tornou comum a referência a seres ilegais e a seres tóxicos - seres cuja permanência no mundo tais vontades vêem como uma ameaça para si e para o mundo.
É vincadamente assim quando o clube vence ou perde um jogo, pois todos os envolvidos ganham ou perdem financeiramnte com isso à excepção dos adeptos que, enquanto "praticantes", é seguro que perdem sempre: além do tempo, o dinheiro das quotas e dos bilhetes. Já quando o clube ganha, é certo que recebem uma dose extra de orgulho por pertencerem ao clube e vestirem as suas cores. (Além disso, todos os envolvidos à excepção dos adeptos praticantes e dos dirigentes do clube podem mudar de clube, mas essa seria uma outra história.)
A história aqui tem a ver com ganhos e perdas para todos e cada um sempre que há mobilizações do "nós" colectivo. Veja-se, por exemplo, o caso do sistema financeiro que, apesar da sua evidente transnacionalidade e globalização, continua a ser do Portugal, da Alemanha, dos Estados Unidos da América, etc. e isso unicamente para que, em caso de bancarrota, todos paguem pelo mal que alguns causaram, e do qual grandemente beneficiaram. Quanto aos dividendos que o "sistema financeiro nacional" proporcionou e proporciona, só alguns têm direito a eles, fruto do mérito, do esforço, da sorte apostadora, para além do peso accionista. A técnica da ilusão assimetricamente inclusiva é tão velha que é estranho alguém chegar à idade adulta sem dar por ela e sem saber o que ela geralmente significa. É caso para perguntar: o que andará a escola a fazer? Ora, provavelmente a ensiná-la para assegurar que se mantém. As disciplinas do direito, da história e da economia são grandemente responsáveis pela perpetuação da ilusão, sem a qual acreditam que a cultura não pode subsistir. E a ilusão, com rédea solta e altamente patrocinada pela escola da cultura, permite sem assombro dizer e escrever coisas tão fantásticas quanto esta: «Sei que dificilmente alguém ganha a Portugal», isto a propósito do futebol e sem que se dê conta de que Fernando Santos, ele próprio vítima da ilusão - ou talvez comprometido com ela - está a falar apenas de uma «selecção masculina de jogadores de futebol de 11 com a nacionalidade portuguesa», a qual, talvez sem o querer e com a complacência jornalística, confunde simultaneamente com o Portugal e com os portugueses e as portuguesas (estas, em particular, deviam sentir estranheza por não estarem representadas naquilo que se diz ser uma "selecção nacional", mas o facto de não sentirem estranheza só comprova o poder e a eficácia da ilusão), naquilo que dir-se-ia tratar-se de uma ilusão derivada ou de segunda ordem.
Mas o pior de tudo é ainda a persistência na "cultura" de criaturas que acham que quem repara na ilusão é porque não é patriota; é porque é de direita ou de uma extremidade política; é porque não é amigo do povo, é porque, enfim, é um porco, um racista de merda .. Sim, desconheço completamente quem seja o presumível Alexandre não sei das quantas, tal como ele, seguramente, me desconhece. E sim, preocupam-me os excessos e a violência verbal que se vêm tornando tão habituais nas redes sociais e nas caixas de comentários dos jornais. Pois talvez indiquem a emergência do velho nazismo cultural - ou seja, a emergência de vontades colectivas que vêem com interesse a eliminação dos seres humanos excedentários, inúteis ou supérfluos - destarte também se tornou comum a referência a seres ilegais e a seres tóxicos - seres cuja permanência no mundo tais vontades vêem como uma ameaça para si e para o mundo.